Os cine-concertos são já uma tradição do Festival Lumière, que encerrou no passado domingo a sua 16ª edição. Sobretudo, mas não só, os que se realizam na sala do Auditorium de Lyon, com a música a ser interpretada pela Orquestra Nacional de Lyon.
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Não se julgue que esta cultura de cine-concertos representa um certo snobismo ou uma representação cultural desfasada da realidade. Ou uma forma abusiva de ligar a história do cinema com outras formas de expressão artística.
Na realidade, os filmes raramente foram “mudos”. Ou melhor: o filme em si não tinha uma banda de som síncrona, porque a tecnologia ainda não tinha sido inventada, mas a exibição de filmes para o público, durante o chamado “período mudo”, que decorreu sensivelmente até ao final da década de 1920 e em alguns casos aos primeiros anos da década seguinte, era acompanhada, em grande parte, por música ao vivo.
Tal foi iniciado sobretudo com músicas improvisadas ao piano, acompanhando os primeiros filmes de curta duração, fossem comédias burlescas ou grandes tragédias retiradas de peças de teatro ou de motivos históricos, passando mais tarde para partituras completas, tocadas ao vivo durante a projeção das longas-metragens que foram surgindo gradualmente a partir de metade da década de 1910.
Com algumas dessas partituras a serem também recentemente descobertas, tem sido prática, em Lyon em outros festivais dedicados ao cinema de património ou em eventos isolados, como já decorreu em Portugal, a exibição de grandes clássicos de cinema acompanhados pela música composta à ápoca expressamente para o efeito.
Foi o que aconteceu há dias, durante o Festival Lumière, com o cine-concerto dedicado ao grande clássico de Carl Th. Dreyer, “Vampyr”. O filme do mestre dinamarquês, datado de 1932 e já com alguns diálogos e efeitos sonoros síncronos, recentemente restaurado pela Deutsche Kinemathek e pela Cineteca de Bolonha, foi exibido com a partitura original de Wolfgang Zeller, restaurada por Timothy Brock, que dirigiu a Orquestra Nacional de Lyon durante a representação.
A programação conjunta do Festival Lumière e do Auditorium de Lyon inclui também, como é hábito a projeção de um filme acompanhado pelo seu monumental órgão. Este ano, a escolha recaiu em “Pêcheur d’Islande”, um restauro também recente deste filme francês de 1924, realizado por Jacques de Baroncelli. Charles Vanel e Sandra Milowanoff interpretam um jovem casal de uma cidade costeira, separados tragicamente pelo mar que leva durante parte do ano os seus homens para a Terra Nova, para a pesca do bacalhau.
O acompanhamento musical foi executado de improviso por Grégoire Rolland, no órgão do Auditorium de Lyon, um dos mais míticos de todo o mundo, composto por 6500 tubos, ali colocado em 1977, mas construído para a Exposição Universal de Paris, em 1878, e de que o mesmo músico inaugurará dentro de dias a nova consola.
Aliás, não será coincidência que Lyon, onde os Lumière inventaram o cinema, em finais do século XIX, seja hoje a cidade do mundo onde se realizam mais cine-concertos durante todo o ano, facto recordado numa das suas apresentações por Thierry Frémaux, alma por detrás do Festival de Cannes e também do Festival Lumière, sendo ainda um dos diretores do Instituto Lumière, cargo que partilhou durante muitos anos com Bertrand Tavernier.
Na realidade, a Orquestra Nacional de Lyon e o Auditorium apresentam regularmente cine-concertos. Para a possibilidade do leitor estar nessa altura na cidade, ou caso queira deslocar-se de propósito para o evento, aqui ficam os eventos e as datas dos próximos eventos do género: “Jurassik Park”, com a música que John Williams compôs para o filme de Steven Spielberg (14 a 17 de novembro), “Le Fantôme de l’Ópera”, versão de 1925, com orquestra dirigida por David Cassan (10 de dezembro) ou “Chaplin and a Smile”, variação sobre várias músicas que Chaplin compôs para os seus filmes (22 e 23 de janeiro de 2925).
Aliás, uma das salas do centro de Lyon testemunhou ainda, numa plateia cheia de jovens em idade escolar, um cine-concerto com três curtas-metragens do período burlesco de Charles Chaplin, “The Count”, “The Cure” e “The Adventurer”, acompanhadas ao piano por Didier Martel.
O programa de cine-concertos realizados na sala principal do Instituto Lumière, a sala Hangar, situada no local onde existia antes a fábrica dos Lumière, incluiu ainda a primeira parte do serial “Rouletabille Chez les Bohémians”, realizado em 1922 por Henri Fescourt, adaptado de uma obra de Gaston Leroux ou “Homens ao Domingo”, clássico do cinema germânico de 1930, assinado por Robert Siodmak e Edgar G. Ulmer, integrado na retrospetiva dedicada a Fred Zinnemann, que participou na realização sem ser creditado.
A grande descoberta dos cine-concertos deste ano foi a projeção de “Manolescu”, de Victor Tourjansky, com as espantosas presenças de Ivan Mosjouskine e Brigitte “Metropolis” Helm, acompanhada ao piano por Fred Escoffier. Cinema e música, um dos pratos fortes do menu gourmet do Festival Lumière