Fado Bicha abriram o cartaz desta sexta-feira com a apresentação do seu álbum de estreia, "Ocupação", que reclama o resgate de identidades que também fizeram a história do fado. Na quinta-feira, houve violinos ciganos, jazz exploratório da Bélgica e de Londres e o rap da chilena Ana Tijoux
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Além da ampla representatividade geográfica, estética e cultural, a filosofia do FMM Sines - Festival Músicas do Mundo passa também por dar voz às minorias, étnicas ou de género, numa lógica inclusiva que visa dar expressão a todas as manifestações musicais do planeta.
Um bom exemplo desse gesto foi a convocatória de Fado Bicha, projeto de Lila Fadista e João Caçador que abriu o programa desta sexta-feira no Castelo de Sines. Juntaram-se em 2017 com um propósito que se enuncia no texto de apresentação do álbum de estreia, "Ocupação", que acaba de ser lançado: "Fado Bicha simboliza a ocupação de um património musical e estético com que cresceram, mas que continua preso a uma rigidez heteronormativa que invisibiliza os corpos, as histórias, as dores e as cores das pessoas LGBTI e queer. Pessoas que fazem parte da história do fado e da sua prática atual, mas que dificilmente puderam criar um legado artístico que refletisse integralmente as suas experiências, histórias e identidades."
Num corpo que deverá ser aberto, tanto à continuidade clássica como às novas leituras e interpretações, de modo a não se tornar letra morta, o fado de Lila Fadista e João Caçador introduz desde logo novas possibilidades musicais no género, como a utilização da guitarra elétrica ou de batidas eletrónicas (a produção do disco foi entregue ao improvável Moullinex). Mas o gancho verdadeiramente inovador do projeto está na "ocupação" temática do fado por uma nova gama de identidades - a canção que fala do amor entre um pescador e um peixeiro -, ou apenas no destapar de identidades escondidas durante os mais de 200 anos de história do fado - "O rapaz da camisola verde", composição de Pedro Homem de Mello de que os Fado Bicha se apropriam, é um bom exemplo.
No seu concerto-manifesto, a dupla reclamou o resgate dessa memória tantas vezes obliterada pela "violência e pela vergonha", repudiou a masculinidade tóxica, o racismo ou as touradas, e a toda a "dor e apagamento" opôs o "orgulho". Mostraram-se como performers seguros, musicalmente e na relação com o público, exibindo doses generosas de humor e sentido de provocação. São mais um elemento a enriquecer o património do fado.
Pândega da Roménia, experimentalismo belga e inglês, e elegância chilena
Na véspera, a jornada encerrara com os violinos desvairados de Taraf de Caliu, projeto de músicos ciganos da comuna de Clejani, no sul da Roménia, que mantiveram os corpos a pulsar até de madrugada.
Outros concertos marcantes da noite de quinta-feira incluíram o jazz belga dos Flat Earth Society Orchestra, ensemble de 15 músicos liderados por Peter Vermeersch e David Bovée. Ativados por duas baterias, contrabaixo e abundância de metais, a que se juntam distorções na voz (tanto ouvimos um Orc como o Rato Mickey) e alguns ângulos de eletrónica, os Flat Earth deformam e manipulam o jazz e o rock num exercício exploratório e bem-humorado, que evoca as desbundas de Frank Zappa ou Captain Beefheart.
Mais cedo, ainda no castelo, atuaram os Steam Down, mais um coletivo associado à nova cena jazz londrina, de que são principais expoentes nomes como Sons of Kemet, Nubya Garcia ou The Comet is Coming. Combinando elementos como o funk, o r&b ou a música caribenha, os Steam Down encontram no saxofone de Ahnansé o seu protagonista. Mas apesar da habilidade na construção dos temas, em que cada instrumento vai sendo destacado num movimento de crescendo, não parecem largar para o mesmo voo dos Sons of Kemet, para aquela tempestade espiritual que também já deixou marcas em Sines.
Referência final para o concerto de Ana Tijoux, chilena que já foi considerada pela "Rolling Stone" a "melhor rapper em espanhol". Mas o título parece até redutor, dada a capacidade da cantora em alternar registos vocais, fluindo entre o rap, a spoken word ou a abordagem mais convencional. Protagonizou um espetáculo elegante, sensual e carregado de mensagens políticas. Porque no FMM a música e a mensagem não vêm separadas,