Atravessam o globo os sons do Festival Músicas do Mundo. Em Sines ouve-se fado na praia, ska surrealista no castelo e jazz cósmico pela noite dentro. Termina este sábado à noite com Omara Portuondo e Seun Kuti.
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Nenhuma outra cidade tem uma relação tão intensa com o seu festival. Assim como se fala de clube-cidade a propósito da paixão dos vimaranenses pelo Vitória, Sines é cidade-festival nos dias em que acolhe as Músicas do Mundo.
Porque não são só os concertos no castelo e na marginal: é a música a irromper em espetáculos improvisados em todas as esquinas, com jugglers e outros performers a acrescentarem variedades; são os constantes ensaios e sound check ao longo da tarde, que antecipam o programa da noite a todos os moradores e visitantes; são ecrãs espalhados pela rua para que ninguém perca o que se passa em cima dos palcos; é uma cidade a adormecer com a música (ou a só conseguir dormir quando a música pára). Como sobreviveu Sines a dois anos sem festival? Se há sinal definitivo de viragem na pandemia, sentimo-lo aqui, nesta explosão global de amor que é o FMM.
Eis o retrato de um dia típico em Sines, depois do habitual aquecimento em Porto Covo, onde tiveram lugar os primeiros concertos do certame. Praia, sol estonteante, grupos de jovens a jogar vólei, um workshop de massagens, raparigas a venderem hambúrgueres vegan. De súbito, escuta-se o fado. A voz dramática de Sara Correia toma conta da Baía de Sines. Tudo se imobiliza numa imagem de reverência. A cantora explica, nas suas letras, porque não se escolhe o fado, é-se escolhido por ele. Percorre "Do coração", álbum de 2020, e termina com homenagem a Amália, "a mais completa artista portuguesa de sempre", cantando "Estranha forma de vida". As massagens prosseguem logo a seguir, ouvem-se vozes, corpos a entrar no mar.
Mais tarde viaja-se até ao deserto para ouvir o "assouf" (blues erguido das dunas) de Mdou Moctar, guitarrista do Níger que inebria com a sua eletricidade, seja em solos virtuosos, seja nas cavalgadas com os outros músicos - uma guitarra rítmica que se entrelaça com a de Moctar, uma bateria que lhe assegura pujança na retaguarda.
A geografia muda depois para os Balcãs, e da contemplação passamos ao desvario com os Dubioza Kolektiv, da Bósnia-Herzegovina. Apresentam-se em palco com um equipamento semelhante ao do Borussia Dortmund e aviam um ska imparável, tingido de reggae e daquela folk que ajuda ao surrealismo nos filmes de Emir Kusturica. O saxofone em ácido provoca a dança descontrolada e a leitura de uma mensagem em (bom) português provoca a gargalhada: "Sabemos que dificilmente a Bósnia irá aderir algum dia à União Europeia, mas gostávamos de poder voltar a participar na Eurovisão. Apoiem o regresso do nosso país, já temos aqui o tema que irá vencer o concurso em 2035." Tango dos Balcãs e uma versão de "Don´t worry, be happy" para celebrar o fim da pandemia completaram a festarola.
Entre estes atos, duas brasileiras, num ano em que as vozes femininas estão em particular destaque no festival. Letrux em toada pop e manifestando o seu apoio a Lula da Silva; Flávia Coelho com baile funk e a dar cacetada em Bolsonaro - explícitas as posições para o próximo ato eleitoral no Brasil, em outubro. Pela noite dentro, o jazz cósmico de Kutu, projeto francês e etíope, e para acordar as galinhas a orquestra (recheada de músicos portugueses) que acompanha o nigeriano Etuk Ubong, trompetista e compositor que designa como "earth music" a sua combinação de afrobeat, highlife e percussão ritual do povo efique.
Outro dia típico começaria com praia, sol estonteante e o ativismo feminista e anti-racista de Bia Ferreira, que na sua poesia, associada ao conceito de "escrevivência" da escritora Conceição Evaristo, denuncia: "No Brasil, a cada 23 minutos a polícia mata um jovem negro"; e liberta: "Uma rajada de cultura para fazer seu coração bater."
O mais cosmopolita dos festivais portugueses termina este sábado, noite alta adentro, com Pedro Mafama, Omara Portuondo ou Seun Kuti, entre outros.