Nunca a beleza feminina nos pareceu tão próxima e humana como nas obras de Peter Lindbergh, o influente artista falecido há dois anos durante os preparativos de "Untold stories". A exposição, a maior reunião de trabalhos do seu percurso artístico de quatro décadas, chegou no final da semana passada à Corunha, depois de, ao longo do último ano e meio, ter percorrido várias cidades alemãs e italianas.
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De acesso livre, a exposição proporciona um olhar panorâmico sobre a obra do fotógrafo que ajudou a revolucionar os cânones estéticos da moda, ao mostrar as supermodelos da década de 90 e seguintes despidas do artificialismo típico das grandes sessões de moda.
"Todas as estrelas queriam trabalhar com ele, porque não pretendia transformar ninguém. Não lhes pedia que sorrissem ou posassem. Apenas queria que fossem elas próprias", afirmou ao "Jornal de Notícias" Benjamin Lindbergh, filho do fotógrafo e atual diretor da fundação criada em sua memória, à margem da inauguração da mostra.
Na centena e meia de imagens que se perfilam no luminoso espaço que acolhe a exposição, encontramos abundantes exemplos desse esforço de anulação dos estereótipos da moda. Lá está Naomi Campbell, com o ar indomável de quem acabou de sair de uma "rave" de uma qualquer praia de Ibiza, no início de 2000, mas também Nicole Kidman ainda em estado puro, com o rosto salpicado de umas irresistíveis sardas que a maquilhagem tratou de ocultar nos filmes, e até Kate Moss, cujo típico "heroine look" dá aqui lugar a uma ingenuidade que chega a ser tocante.
O desfile de estrelas que se precipitaram para a objetiva do fotógrafo é quase interminável e dele constam as não menos badaladas Charlotte Rampling, Uma Thurman, Linda Evangelista e, claro, Claudia Schiffer, a protagonista-mor das passarelas da sua época.
As cicatrizes da beleza
Não é fácil encontrar as razões pelas quais estas vedetas, símbolos maiores da beleza universal e incensadas por milhões, acediam, afinal, a participar em sessões fotográficas que deixavam à vista os seus defeitos. O filho de Peter Lindbergh tem uma possível explicação: "Todos os fotógrafos com quem elas trabalhavam já lhes davam essa possibilidade de exibirem uma imagem glamorosa. O que o meu pai lhes proporcionava era muito diferente. Para ele, a beleza passava por nos assumirmos como somos, se necessário for com cicatrizes e sem retoques".
Obcecado pela figura feminina, de quem procurava captar bem mais do que o exterior, Peter Lindbergh pouca atenção dedicou aos modelos masculinos, que dizia serem falhos de mistério. Na exposição galega há apenas um, aliás: Antonio Banderas, fotografado de cabeça baixa e estranhamente inerte, como se estivesse a expiar pecados.
Na última dezena e meia de anos, à medida que as supermodelos do final do milénio foram saindo de circulação, o trabalho de Lindbergh começou a passar sobretudo por grandes produções nas quais expressava preocupações sociais e políticas, mas sem jamais colocar de lado o indivíduo. Essa premissa atinge o auge no derradeiro núcleo da exposição, "Testament", um perturbador portefólio em que as expressões faciais de um condenado à morte acompanham o olhar do visitante.
Apesar do título, não se espere encontrar nesta exposição, patente até 28 de fevereiro de 2022, grandes inéditos. As histórias por contar são as que cada visitante vai construindo mentalmente à medida que acompanha as fotografias e se vê refletido nelas, no sentido literal e não só.
Como se transforma um porto num museu
Incrustado na zona portuária da Corunha, o pavilhão construído para a exposição "Untold stories" parece lá estar desde sempre, tal a forma como se funde com a paisagem agreste que o rodeia.
No seu interior, o preto e o branco continuam a predominar, mas sem que isso signifique uma visão assética ou fria.
Nas três salas, através das quais os visitantes são conduzidos após percorrerem um corredor onde desfilam imagens furtivas de modelos, encontram-se outras tantas dimensões do fotógrafo nascido na Polónia durante o período da ocupação alemã, na Segunda Guerra Mundial.
A primeira sala, "o coração da exposição", como a designa Benjamin Lindbergh, filho do fotógrafo, funciona como um autêntico manifesto: 24 imagens de grandes dimensões impregnadas na parede que ora confrontam ora desarmam os visitantes.
Segue-se a principal ala expositiva, com mais de uma centena de fotografias, na sua maioria de modelos ou artistas célebres.
A última parte é a mais disruptiva. Durante seis meses, Lindbergh acompanhou o dia a dia de um condenado à morte, capturando as suas expressões no projeto "Testament".