“Gosto muito de me surpreender no cinema”, Alain Guiraudie esteia "Misericórdia"
Um homem regressa à terra natal, para o funeral do antigo patrão, ficando em casa da viúva. Por entre as histórias que inventa, há um crime e um padre não muito ortodoxo. “Misericórdia”, de Alain Guiraudie, em estreia nos cinemas, é um filme onde mistério e humor se cruzam.
Corpo do artigo
Há uma pequena participação de Portugal na produção. Em Cannes, onde o seu filme estreou mundialmente, estivemos a conversar com Alain Guiraudie.
De onde vem a personagem central do seu filme? É uma espécie de Tom Ripley, pode fazer o que quiser, mesmo matar, que nada lhe acontece…
Nunca li nenhum livro da Patricia Highsmith. Parece que tenho de o fazer. Muita gente pensou nestas personagens, que se safam sempre. O que foi muito importante para mim foram os livros de Raymond Chandler e Dashiel Hammett ou o filme negro, os filmes de Howard Hawks ou Fritz Lang. Foram esses filmes que me fizeram amar o cinema e esses livros que me fizeram amar a literatura.
Como nesses livros e nesses filmes, há uma certa solidão em torno dos protagonistas, que se nota também no seu filme.
Nunca fiz essa conexão, estas conversas fazem-me também refletir bastante sobre os meus filmes. No geral, os meus filmes são sobre esse tema, como conseguir ser solitário no meio de toda a gente. Talvez venha de uma certa solidão que existe em mim mesmo. De que eu gosto e gosto de abordar nos meus filmes. Mas tem a ver também com uma ideia do mundo, política. Talvez a grande ideia política é que o mundo está cheio de gente que está sózinha mas que temos de fazer viver em sociedade.
Voltou a filmar fora dos centros urbanos. Como é que escolheu esses lugares?
A vila é uma vila muito característica. Há um lado intemporal, com algumas casas que permaneceram como nos anos 70 e outras mais modernas, mas que evitámos filmar. Já a conhecia, não há tanto tempo como isso, mas de que me lembrei quando tive de decidir onde filmar. E quis filmar no outono, com as suas folhas amareladas e a caír, com o vento, que é muito importante no filme, a chuva e o nevoeiro.
O humor do filme é muito particular e vai-se instalando aos poucos, sobretudo depois do crime.
Na primeira projeção, aqui em Cannes, fiquei com a impressão que as pessoas se começavam a rir com os polícias, durante o inquérito. Tenho de dizer que não tinha consciência que isso podia acontecer. Mas não há dois públicos iguais. O humor também vem da personagem do Jérémie, que está sempre a contar histórias, a inventar enredos. Com ele, é como se estivéssemos num pequeno teatro.
A personagem do padre é tão humana, tão tocante, e provocadora, à sua maneira.
É verdade que investi imenso na personagem do padre. Posso dizer que é a minha personagem preferida. Há essa ideia, que me é muito pessoal, de um certo apego às tradições, mas ao mesmo tempo com uma modernidade, na sua forma de pensar, na própria ideia que tem da misericórdia. Mas é um homem, fiel ao seu desejo. Ama alguém e está pronto a ir até ao fim para proteger o objeto do seu desejo. Há uma ideia que percorre o filme, de que se pode amar alguém sem desejo carnal.
É ele o herói do filme…
Com a sua sutaina, podemos mesmo pensar na capa de um super-herói, um Batman com uma bela ereção. E que aparece sempre quando é preciso.
Há uma certa semelhança, mesmo estética, com “O Desconhecido do Lago”.
Há menos gente na floresta deste filme do que em “O Desconhecido do Lago”. Mas é uma marca minha, mostrar gente que observa os outros de longe, muitas coisas se passam apenas através do olhar, sem saber se o olhar do outro é de desejo ou mal-intencionado. Tem a ver com o que eu dizia, são histórias de solidões que se encontram.
Voltou a trabalhar com a diretora de fotografia de “O Desconhecido do Lago”, a Claire Mathon. Que tipo de discussões prévias teve com ela?
As grandes questões tinham sobretudo a ver com os enquadramentos. As cores estavam lá, na natureza, nas casas. Nos interiores, houve coisas que foram pintadas de novo, num trabalho conjunto com a chefe de decoração. As grandes conversas com a Claire tiveram a ver com a luz durante as sequências noturnas. E decidimos filmar o mais possível com a luz natural, como nas noites de Lua Cheia.
As cenas de luta são as mais íntimas do filme. Como é que as coreografou?
Há uma relação entre luta e sexo, as personagens lutam para evitar fazer amor. Ou para alcançar um contacto físico com o outro. A cena mais física é a do crime, porque é a mais longa e a mais intensa. Privilegiámos a luta corpo e corpo, mais próxima da realidade, que o de boxe, como vemos nos filmes de ação, onde há uma distância entre as pessoas.
Os diálogos do filme têm a precisão de um canivete suíço. Foram muito trabalhados ou houve algum espaço para o improviso?
Há um pouco de tudo. Trabalho muito os diálogos no processo de escrita. Durante a rodagem trabalhámos muito os tempos de silêncio. É uma mudança grande, relativamente aos meus filmes anteriores. Como há menos diálogos, ganham mais importância. Também eliminámos muitos momentos de diálogo durante a montagem.
No fundo, os seus filmes são quase sempre crónicas do inesperado. É algo de consciente?
Eu gosto muito de me surpreender a mim mesmo. E esse lado do inesperado torna-se importante nos meus filmes, sim. Estou muito apegado ao aspeto teatral do meu cinema.
Como é que se passou a coprodução com Portugal?
Foi sobretudo no som que os portugueses trabalharam. O Vasco Pedroso foi o engenheiro do som. E fizemos as misturas em Lisboa com o Branko Neskov, que percebeu muito bem o filme. Foi maravilhoso trabalhar com ele.
Além do Joaquim Sapinho, o Albert Serra também é coprodutor do filme.
O Albert Serra tinha escrito um texto muito bonito sobre o “Rester Verticale”. É alguém que gosta do meu trabalho.