Arranca esta quinta-feira a 11ª edição do Festival Internacional de Dança Contemporânea de Guimarães. Rui Torrinha falou com o JN sobre o caminho trilhado até aqui.
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Quando a pandemia se tornou inescapável, no remoto-recente 2020, a americana Laurie Anderson realizou um sonho antigo: conduzir um programa de rádio a meio da noite. Chamou-lhe "Festa no Bardo", resgatando um termo do livro tibetano dos mortos, que significa "lugar de passagem", um espaço-tempo que já não é o que foi e também ainda não é o que será.
Esse não-lugar em que a pandemia nos estacionou há dois anos é o ponto de partida para a 11ª edição do GUIdance, Festival Internacional de Dança Contemporânea, que regressa a Guimarães, e onde até dia 12 deste mês, em dois alargados fins de semana consecutivos, serão apresentadas dez criações e alimentada a utopia fundacional do festival: "mudar o mundo a dançar", como fixou Rui Torrinha no texto de abertura do programa que arranca às 21h30, no Centro Cultural Vila Flor (CCVF), com "Escala" de Sofia Dias e Vítor Roriz, dupla de criadores que surge em dose tripla nesta edição.
Palavra de ordem: mudar
Rui Torrinha, que dirige desde 2015 o festival criado na antecâmara da Capital Europeia da Cultura 2012, sucedendo aos programadores José Bastos e Rui Horta, socorreu-se do bardo utilizado pela escultora do "Big Science", para explicar ao JN que esta etapa do Guidance é "uma edição entre dois mundos: todos nós fomos submetidos, contra a nossa vontade, a uma contenção, a uma retenção violenta. O nosso corpo foi atacado e procurou gerar respostas, nexos de relações, que ainda não compreendemos". É um momento, continua, de "transição civilizacional", onde o corpo - "O corpo é a mais avançada tecnologia de todas", acredita - e, através dele, a dança, funciona "como motor de libertação, como carburador para a mudança".
Mudança é, de resto, a palavra de ordem adotada por este desassossegado GUIdance, organizado pela cooperativa A Oficina, que desta vez, "espelhando o espírito do tempo", explora temas como "a resistência, a ironia, a contradição, a violência, a perversidade, a transformação, a luz e a escuridão, os limites humanos e o convívio com o desconhecido". E que traz de volta dois criadores cruciais e muito da casa: o coreógrafo belga Wim Vandekeybus, que subirá, ele próprio, ao palco no último dia do festival (dia 12), e o casal Gabriela Carrizo e Franck Chartier, fundadores da companhia Peeping Tom, que vem apresentar, já este sábado, o encerramento de uma perturbadora trilogia familiar.
"Amor de risco"
Após o "corte cirúrgico" ditado pela pandemia, o GUIdance volta assim a renascer, mantendo-se fiel ao início de uma aposta altamente improvável que fez de Guimarães uma paragem obrigatória no universo da dança contemporânea logo a partir o ano em que inventou um festival fora do calendário habitual dos festivais, em pleno inverno.
"Não gosto de chamar-lhe aposta de risco, prefiro chamar-lhe amor de risco", diz Torrinha sobre a ambição que fez nascer esta montra internacional de dança, um óvni num território sem qualquer tradição nessa área, e que continua, ano após ano, a "investir na construção da relação com os criadores - gostamos do lastro por oposição ao patchwork - e com os públicos". Esta lógica programática, que reflete também um desejo de democratização - "Nunca quisemos ser um festival elitista, fechado" -, é evidente no cartaz de 2022: "Não tivemos a obsessão pela estreia (há apenas duas), pelo novo. Optámos por resgatar peças que foram pouco vistas, que são fundamentais para a história da dança em Portugal e que não podem ser esquecidas". Exemplo disso, diz, "é a peça profética de Vera Mantero (dia 10), que já está lá à frente a desafiar-nos para o que virá".
10 Espetáculos
"Escala"
Sofia Dias e Vítor Roriz
3 Fev. 21h30 - CCVF
É a peça que encerra o projeto "Infiltração", em que os criadores se lançaram na esperança de serem surpreendidos "com a inevitabilidade de uma ideia mais adequada a este tempo".
"Tanzanweisungen"
Moritz Ostruschnjak
4 Fev. 21h30 - Black box
Vamos ver o bailarino canadiano Daniel Conant executar um solo de "schuhplattler", dança alemã tipicamente masculina, mas também vamos vê-lo em breakdance, no boxe e a saltar à corda. É a ironia, o abismo e a extravagância do coreógrafo Moritz Ostruschnjak em todo o seu esplendor.
"Sahasrara"
Maria Fonseca
5 fev. 18h30 - Black box
Uma reflexão sobre a pandemia quando a pandemia começa a esfriar. Já saberemos dizer aquilo em que o inesperado nos tornou?
"Kind"
Peeping Tom
5 fev. 21h30 - CCVF
A companhia de Gabriela Carrizo e Franck Chartier é assídua em Guimarães desde 2011, desde a avassaladora estreia em território nacional, com "32 rue Vandenbranden", sobre as fronteiras da solidão. "Kind" fecha uma trilogia sobre a família, viajando até aos bastidores de uma criança, depois de o ter feito também em "Vader" (Pai) e "Moeder"(Mãe).
"Sons mentirosos, sons misteriosos"
Sofia Dias e Vítor Roriz
6 fev. 16h - CCVF
A segunda criação da dupla Dias/Roriz é um jogo entre o som e a imagem, e a ilusão que provocam. Repete dia 7, às 10h30 e às 15h.
"Um gesto que não passa de uma ameaça"
Sofia Dias e Vítor Roriz
9 fev. 21h30 - CCVF
Como reage a mente quando assimila a perda e de que forma responde o corpo à subtração é a terceira proposta de Dias/Roriz.
"O susto é um mundo"
Vera Mantero
10 fev. 21h30 - CCVF
É como se Vera Mantero tivesse viajado até ao futuro e voltasse agora para contar como será - não o futuro físico, tecnológico, mas o futuro dos sentidos e da possibilidade que se abre para um novo equilíbrio com o mundo. Ou não.
"Cabraqimera"
Catarina Miranda
11 fev. 21h30 - Black box
É uma "peça de dança para um quarteto em patins", mas também se assemelha a um mergulho na ficção científica. É capaz de fazer saltar o público da cadeira.
"Body Monologue"
Anastasia Valsamaki
12 fev. 18h30 - Black box
A bailarina Gavriela Antonopoulou co-criou com a coreógrafa grega Anastasia Valsamaki este solo em que o corpo se torna eloquente num monólogo anterior ao vício da palavra.
"Hands do not touch your precious Me"
Wim Vandekeybus
12 fev. 21h30 - CCVF
"As mãos não tocam no teu precioso Eu" é o título retirado de uma oração dirigida a Inanna, deusa do amor, do sexo e da justiça, rainha mais triunfal e mais contraditória. É o ponto de partida para o qual Vandekeybus convocou o performer francês Olivier de Sagazan e a compositora espanhola Charo Calvo.