Covid-19 levou artistas a procurarem outras profissões. Com a pandemia ainda a pairar, este ano não regressaram.
Corpo do artigo
"É bom este silêncio na tenda, dá-nos tempo para trabalhar. Mas só por um bocado", diz Joaquim Cardinali, enquanto cuida de não se sentar de costas para a pista, para não acicatar a má fortuna. Essa falta de sorte foi o caminho encetado no início de 2020. Depois do frenesim natalício de 2019, foi para a sua quinta perto da Figueira da Foz, de onde controla os circos entre Lisboa e Porto, para descansar, e não saiu mais. Seguiu-se um ano e nove meses sem trabalho, Agora, o seu circo Soledad Cardinali está de regresso a Matosinhos.
Para contornar a pandemia, algo que quatro gerações Cardinali nunca tinham vivido desde que vieram de Itália para o "paraíso" que era Portugal, Joaquim Cardinali teve de vender vários camiões. Os filhos foram trabalhar para fora; Iris regressou para este Natal, após um período como trapezista na Finlândia, para onde regressa em janeiro. "Estar lá foi uma pausa da covid", conta. O irmão, que estava com ela, não vem. "O meu filho está agora a trabalhar num dinner show na Alemanha, coisa chique", conta o pai Cardinali, com alguma picardia.
Com eles está Máximo Luftman, sete gerações circenses no sangue, uma família austríaca que também se rendeu a Portugal. Já foi trapezista e palhaço, atualmente é produtor de números de freestyle com motos: "Gosto de os organizar. Se não houvesse medo, risco e aventura não era circo". No dia em que conversámos está em Matosinhos, mas já esteve em Inglaterra e a seguir parte para a Áustria: "Em Viena ninguém pode entrar. Tenho de deixar os camiões e voltar".
Este ano, além dos cancelamentos que surgiram em catadupa "assim que António Costa começou o seu discurso", depararam-se com outro problema: não havia gente para trabalhar no circo. "Os artistas de circo são os homens dos mil e um ofícios. Foram para camionistas e serralheiros à espera que isto passe", conta Joaquim. A filha Iris anui e acrescenta: "Este trabalho não dá segurança nenhuma, pelo que preferem estar noutro trabalho fixo em que ao menos vão ganhando".
E o circo necessita de muita gente. Não só os que estão na pista mas também pessoal de manutenção e de logística. Atualmente, Joaquim Cardinali tem 30 pessoas a trabalhar em Matosinhos, mas isto só é possível porque este ano o circo é mais pequeno.
vender pipocas na rua
Do outro lado do Atlântico a história não difere, como dizem os Brasil Riders, em cena no Circo Coliseu Porto Ageas. Fabinho Araújo trabalhava num circo no Paraná. MacGyver Portugal provém de uma família circense de São Paulo e depois de uma carreira tradicional de circo, primeiro como trapezista, depois como palhaço, a pandemia deixou-os a vender algodão doce e pipocas na rua "para pôr comida na mesa".
Até que chegou o convite para Portugal. "Circo num teatro? Quanta honra!" Embarcaram para se reunirem no Globo da Morte. A eles juntou-se o português Filipe Gonçalves, que passou o último ano na construção civil; depois desta incursão no Circo do Coliseu portuense vai tentar "uma carreira na pastelaria, em Barcelona". Os três são unânimes, quer no Globo da Morte, quer na vida: "Parar é que nunca".
Estreias
Companhias que a pandemia precipitou
Se a covid-19 terminou com algumas carreiras no circo, também há quem tenha aproveitado este período para arrancar com projetos próprios. João Antunes (foto) tem 22 anos e em 2020 estava a terminar a formação no Instituto Nacional de Artes do Circo (INAC). Aceitou fazer uma animação no "Cascais é Natal" para angariar dinheiro para entrar num curso de Criação e Produção de Espetáculos, de onde nasceu a produção "Fragmentado" e, em maio, a companhia Caos. Lia Cabaço e Sofia Encarnação percorreram um caminho análogo: saídas do INAC e após passagem pelo Chapitô, criaram a Companhia Absurda. E já conseguiram vender alguns espetáculos, apesar das remarcações nos teatros, um dos maiores problemas que enfrentam.