Mais um passo virtuoso na construção do universo sonoro de Filho da Mãe.
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O sexto álbum Rui Carvalho, aliás Filho da Mãe, foi tecido durante a montanha-russa dos últimos dois anos de pandemia, fruto de três residências artísticas - duas em Lisboa, no Musicbox e na Fábrica de Pão, uma na Gafanha da Nazaré, em Ílhavo.
Em rigor, nas 14 faixas de "Terra dormente" não é destrinçável onde cada uma foi registada, um reflexo da sua unidade de visão e propósito, vogando entre a sons acústicos e ligados à corrente. Uma essência colocada em cima a mesa sem rodeios logo a abrir: "Sonho", composição que se desenvolve a duas velocidades em simultâneo, sabe a madrugada, tem ânimo e esperança, terminando já envolta por um leve manto de neblina elétrica.
Poder-se-ia imaginar que um título como "Música do campo" seria prenúncio de uma conversa transatlântica entre Portugal e os Estados Unidos; mas o que se escuta, na verdade, é uma abordagem à folk-rock britânica dos anos 1970. "A um osso" tem simultaneamente qualquer coisa de granítico e mediterrânico, e se o andamento fosse mais tranquilo passaria perto de alguns instrumentais dos Madredeus. Os dois momentos de "Interlúdio" levitam numa penumbra a céu aberto, música ambiental e cinematográfica com o seu quê de Daniel Lanois. Num filme bastante distinto, imagina-se facilmente "Traste sorte", que lança Filho da Mãe através de um portal Carlos Paredes, tocada numa guitarra portuguesa.
A música de "Terra dormente" é admiravelmente física, palpável, pintando lugares que se projetam na imaginação, um diálogo e uma discussão insistentes entre cordas acústicas e elétricas. A estes ouvidos, os momentos de predomínio acústico têm uma promessa de mundos nas entrelinhas e uma limpidez de ideias mais convidativa ao mergulho. É o caso das cavalgadas banhadas de luz em "Corredor", "Barata do cais" ou "Vozes fora" (que até termina numa muralha de distorção orquestrada absolutamente My Bloody Valentine; e há uma sequela chamada "Noise"). Não há nada de dormente na terra deste disco.
Terra dormente
Filho da Mãe
Omnichord