Homenageada na edição deste ano do Festival Cannes, a mítica atriz norte-americana, de 85 anos, teve um emotivo encontro com o público em que recordou os momentos mais altos da sua carreira e apelou a uma maior consciência ambiental.
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É daquelas personalidades que não necessita de grandes apresentações. Filha de um dos gigantes do cinema americano, Henry Fonda, Jane Fonda cedo conquistou o seu lugar no cinema por direito próprio. Ainda estávamos nos anos 70, o das grandes contestações nos Estados Unidos e já Jane Fonda se destacava também pelo seu ativismo político.
Serão no entanto filmes como "Klute" ou "O Regresso dos Heróis", que lhe deram Oscars, ou aqueles que lhe valeram nomeações, "Os Cavalos Também Se Abatem", "Júlia", "O Síndroma da China", "A Casa do Lago" e "A Manhã Seguinte", ou objetos de culto como "Barbarella", "Descalços no Parque", "Das 9 às 5" ou "Tudo Vai Bem", que a colocaram no coração dos cinéfilos de todo o mundo.
Há dias, no festival de Cannes, Jane Fonda teve um encontro com o público e a imprensa e o que mais impressionou desde logo foi a eterna juventude de uma mulher longe de parecer ter os 85 anos que leva de vida. "O segredo é não tentar parecer-se com mais ninguém. Há muitos anos fiz cirurgia plástica e não me orgulho nada", revelou. "Tenho uma boa maquilhadora e durmo bem. Ontem à noite dormi treze horas. Faço exercício, ando muito a pé. O mais importante de tudo é ser bastante curiosa."
Em 1970, no auge da luta contra a guerra do Vietname, Jane Fonda afirmara que o seu desejo era que todos os países do mundo estivessem em permanente revolução. "E os artistas também", sublinha. "Qual é o nosso trabalho? É mostrar a realidade, através das nossas personagens, que temos de compreender. E isso dá muito trabalho. De cada vez que entramos na pele de uma personagem é como uma revolução."
A atriz e produtora deu um exemplo de como os artistas se devem envolver no trabalho no cinema. "Quando fiz Mulher Felina, trabalhávamos catorze horas por dia. O Lee Marvin disse-me que nós éramos as estrelas mas quem sofria mais era a equipa técnica. Devíamos estar do lado deles. Ele era um soberbo ator e um ser humano muito generoso. É uma lição para as jovens atrizes, devem preocupar-se com as pessoas com menos estatuto e que não devem ser exploradas."
A conversa teria obviamente de chegar cedo à evocação da relação profissional com Robert Redford. "Eu estava apaixonada por ele. Fiz quatro filmes com ele e em três estava perdidamente apaixonada. Quer dizer que me fartei de me divertir. Mas ele não gostava de me beijar", recorda. "Passámos bons momentos. É uma boa pessoa, criou o festival e o instituto Sundance. Mas tem um problema com as mulheres..."
De Robert Redford, Jane Fonda passou para Alain Delon, com quem fez "A Jaula do Amor". E disse: "Oh meu Deus. Agora não, teve uma vida dura, mas na altura era o ser humano mais belo do mundo. Fiquei impressionada. E ele gostava de me beijar. Fizemos algumas cenas de amor, mas não muitas. Foi o meu primeiro filme europeu, uma experiência bastante diferente. Começámos a filmar em Nice, ele era tão belo. Foi muito divertido trabalhar com ele. E foi durante essa rodagem que conheci o Vadim."
Durante sete anos, Jane Fonda viveu um primeiro casamento, com o realizador francês Roger Vadim, com quem fez alguns filmes. O mais famoso será seguramente "Barbarella", que a atriz agora recorda. "Não gostei muito de o fazer, mas agora quando o vejo acho que é divertido. No princípio eu tinha de fazer uma espécie de strip-tease no espaço, mas o Vadim garantiu que não se via tudo. Eu era muito tímida, tive de beber muito vodca para fazer essa cena."
Também de Vadim, mas com Michel Piccoli como parceiro, é a "Queda no Abismo" que Jane Fonda vai buscar a sua memória mais pessoal. "A minha mãe suicidou-se quando eu era muito pequena e nesse filme eu tento matar-me. Foi importante para mim, como se me estivesse a aproximar da minha mãe, graças a essa experiência."
Jane Fonda recorda um episódio que mudou em definitivo o seu aspeto exterior. "Sempre tive aqueles cabelos louros. Dava-me uma certa segurança. Aos 13 anos um rapaz veio ter comigo e perguntou-me se eu era um rapaz ou uma rapariga. Fiquei muito contente, porque não queria ser rapariga. Quando me interessei pela política e pelo ativismo, decidi que tinha de me desembaraçar do cabelo louro. Fui a um cabeleireiro de homens que me cortou o cabelo muito curto. Senti-me bastante livre."
A consciência política e o ativismo chegaram com a contestação à Guerra do Vietname. Mas o processo não foi imediato. "Quando vivi em Paris com o Vadim, soldados americanos que tinham desertado contaram-me o que se passava realmente no Vietname. Nem queria acreditar. Se americanos estavam a lutar era do lado dos bons".
O clique chegou com a leitura de "The Village of Ben Suc", de Jonathan Schell, como conta. "O livro descrevia muito bem o que estávamos a fazer no Vietname. Quando acabei de ler esse livro era uma pessoa diferente. E não podia ser contra a guerra em França, tinha de ir para os Estados Unidos. Deixei o Vadim, fui para os Estados Unidos e comecei a organizar coisas. Fui para Detroit, encontrei-me com os sindicatos das indústrias do Michigan. Estava com pessoas a sério, não com atores. Com trabalhadores, com indígenas, com negros, pessoas a quem queríamos resolver os problemas. Tinha a impressão que a minha celebridade me afastava deles."
A militância feminista de Jane Fonda chegou quando fez de prostituta no clássico "Klute", de Alan J. Pakula. "Cheguei a Nova Iorque uma semana antes da rodagem. E passei essa semana no meio de prostitutas. Eram mulheres muito bonitas, não houve um único homem que olhasse sequer para mim. O melhor era o realizador chamar a Faye Dunaway, ela seria perfeita, todos os homens iriam querer ir para a cama com ela".
Jane Fonda acabou por se inspirar numa dessas mulheres e fez o filme, que lhe valeu o primeiro Óscar. "Aquelas prostitutas eram muito inteligentes, tinha a sensação de que poderiam fazer muitas outras coisas, em vez de venderem o corpo. Mas precisavam de dinheiro e tinham todas sido abusadas em criança. Na cena em que enfrento o assassino, lembrei-me de todas as mulheres que foram mortas e abusadas por homens. Fartei-me de chorar. Foi nesse momento que me tornei feminista. Foi um momento muito importante da minha vida."
A parte da conversa dedicada aos movimentos feministas concluiu-se com a opinião da atriz sobre o #metoo: "Fez uma grande diferença. Não impediu que o assédio sexual continuasse mas as mulheres sabem hoje que podem falar e que vão acreditar nelas", disse. "Quando somos atacadas sexualmente e as pessoas não acreditam é como se fôssemos atacadas duas vezes. Realmente houve grandes progressos, mas a luta ainda não acabou."
"Temos de tomar o poder"
Passou-se então para a luta mais recente da atriz, sobre as alterações climatéricas. "Ainda podemos ter esperança de que as coisas se passem bem, se tomarmos as boas decisões. Temos sete ou oito anos à nossa frente para fazermos as coisas bem. Nós artistas temos uma grande responsabilidade, é preciso que as grandes companhias petrolíferas e as refinarias parem senão será o fim para todos nós, quando o ecossistema falhar", referiu.
Jane Fonda não podia no entanto ser mais crítica em relação ao que se passa no seu país. "A razão pela qual não avançamos nos Estados Unidos é porque as pessoas que são eleitas são pagas pela indústria petrolífera. Tanto os democratas como os republicanos. A minha luta é de fazer eleger pessoas que lutem pelo clima e deixar de fora os que são pagos pelas petrolíferas. É uma luta difícil, mas sou muito organizada, durmo bem e tenho uma grande energia"".
E a atriz e ativista tem uma estratégia: "Temos de tomar o poder. Temos de continuar a manifestar-nos, é certo, mas temos de ter o poder. Precisamos de líderes, mas infelizmente há uma grande tendência da esquerda não ter líderes." E aconselha: "Temos de ter paciência para falar com as pessoas que não pensam como nós. Antes da pandemia passei bastante tempo a bater à porta de eleitores de Trump. Temos de escutar as pessoas que não estão de acordo connosco, de coração aberto. Não tenham ódio de quem está traumatizado. Temos de os saber ouvir, para os poder mudar."
Jane Fonda não está sozinha nesta luta. "Tenho uma equipa de especialistas, cientistas, advogados, trabalho com a Greenpeace. Não podia fazer esta batalha sozinha. Sou muito organizada e faço muito bem a gestão do meu tempo", refere. E não hesita em colocar o dedo em outras feridas. " Não teria havido crise climatérica se não houvesse racismo e patriarcado. Os homens brancos, é o que conta, todos os outros estão abaixo na escala. Quanto mais aprofundamos uma questão mais vemos como tudo está ligado. Não conseguimos resolver a crise climatérica se não resolvermos os outros problemas."
Antes de terminar, de uma forma mais desanuviada, a conversa voltou a centrar-se sobre o mundo do cinema. "É muito duro sobreviver em Hollywood", refere. "Não me deixei esmagar porque fiz sempre outras coisas. Saí dos Estados Unidos, vim viver com o Vadim numa mansarda em Paris. E depois tenho o meu ativismo. Nunca senti que fazia parte de Hollywood. Sempre me perguntei porque estava aqui neste mundo, e encontrei a resposta quando me tornei ativista. Foi o ativismo que deu sentido à minha vida."
Foi com o pai, Henry Fonda, que Jane fez o primeiro trabalho como atriz, nos palcos, Mas, como refere, para deixar de viver a sombra do pai, decidiu ir viver para Paris. Mas acabaria por estar por detrás do último filme de Henry Fonda, "A Casa do Lago", como recorda. "O meu pai estava muito doente, era cardíaco, sabia que ele não ia viver muito tempo e não queria que morresse sem que fizéssemos um filme juntos. Adquiri os direitos da peça e fizemos o filme"
Não só Henry Fonda ganhou um Óscar como o mesmo aconteceu com Katharine Hepburn. E Jane Fonda revela-nos uma história curiosa. "Não sabíamos ainda quem iria fazer o filme com o meu pai e um dia recebemos um telefonema de alguém a dizer que sabia que íamos fazer um filme com ele. Era a Katharine Hepburn. Claro que a contratámos e foi uma das experiências mais gloriosas da minha vida. Fiz o filme para o meu pai mas a pessoa que mais me ensinou foi a Katharine Hepburn."
A partir de certo momento da sua carreira, Jane Fonda tornou-se também produtora. O primeiro filme em que se envolveu nessa área foi "O Regresso dos Heróis", como recorda. "Passei três anos a trabalhar com soldados americanos que regressavam do Vietname e que estavam hospitalizados. Falei com eles, com as mulheres deles. Sabia bem o que tinham sofrido. Uma mulher disse-me que quando o marido regressou tinha a impressão que ele estava vazio por dentro."
Curiosamente, ainda está em cartaz o último filme de Jane Fonda, "Do Jeito Que Elas Querem - Um Novo Capítulo", onde contracena com outras três veteranas, Diane Keaton, Candice Bergen e Mary Steenburgen. "Fico espantada por ainda me proporem papéis no cinema, tenho quase 86 anos", assume. "Normalmente não aceitaria fazer dois filmes seguidos sobre quatro velhotas. Não quero voltar a fazê-lo, não sei o que vai acontecer. Não quero fazer filmes que não representem um desafio. Estou demasiado ocupada com a crise climatérica para andar a fazer filmes. No próximo ano vamos ter uma importante eleição presidencial, vou passar o próximo ano e meio empenhada no meu ativismo político", concluiu.