João Gonzalez reviu no Porto, entre alunos do Secundário, a sua curta candidata ao Oscar de animação. Houve palmas e comoção.
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João está diluído entre os espectadores, é pouco mais velho do que eles, eles vieram para a sessão das escolas secundárias do Festival Indie Júnior no Batalha Centro de Cinema, no Porto, ele tem 26 anos. Está sentado muito plácido na plateia, afofado na cadeira da ponta da fila H, está sozinho e místico e ignora o burburinho que rumoreja brando na cheia sala. Dizem o nome dele, "João Gonzalez", as cabeças volteiam, "ele está aqui entre nós", rebentam palmas, ele levanta-se, "é uma felicidade o João ser do Porto", mais palmas, chega-se à boca da sala, "é o primeiro português a ser nomeado para um Oscar", e as palmas pipocam outra vez no ar.
Parece embaraçado, ou abismado com tanta atenção, fala muito pouco e muito depressa. "Obrigado por terem vindo. Este filme começou como um projeto de escola. Demorou dois anos a fazer. Não é só meu. É de uma equipa muito pequena e muito talentosa. Foi feito com amor. Espero que gostem". E aturdidamente torna a sentar-se entre nós.
O que estará a sentir é a tontura da honra e da vertigem descomunal, e os seus olhos não param de brilhar: João Gonzalez, português do Porto, é o realizador - e argumentista e animador e editor e produtor e autor da banda sonora - de "Ice merchants", a curta-metragem de animação de 14 minutos que faz história como o primeiro filme português a conseguir uma candidatura aos Oscars em 95 anos. Dia 12 de março, em LA, EUA, decide-se se ele vai ganhar.
"É tudo ainda muito fresco e muito chocante, para falar a verdade. Eu só soube na terça-feira, ao mesmo tempo que toda a gente, a ver a emissão em direto do anúncio dos Oscars", diz João Gonzalez ao JN, agora sentado no 2.o andar do Batalha, a cara cheia de luz solar. "É mesmo surreal. Um dia estás no teu quarto a desenhar e no dia a seguir és candidato ao Oscar. Não é irreal isto estar a acontecer?".
ele salta como num golo
O momento surrealista está eternizado em vídeo no Instagram @_joao_gongalez. É uma imagem de múltiplos ecrãs, a equipa do filme toda espalhada pelo Mundo a ver o anúncio ligada no Zoom, num dos quadrados o João está em casa, em São Mamede de Infesta, com o pai e a mãe a ver. Os nomes dos candidatos começam a desfilar, o seu é o terceiro de cinco, os quadrados do Zoom estouram de braços e risos pelo ar. Vale a pena ampliar a imagem com os dedos: João salta, levanta os braços, fecha o punho a bramir o braço como num golo, senta-se, levanta-se, leva as mãos à cabeça, torna-se a sentar, abraça os pais, estão ali todos a estontear.
"Ice merchants", animação expressionista em 2D entre os ângulos extremos de Murnau e o realismo mágico de Miyazaki e de Kunio Kato, é um drama familiar com um poder visceral.
Em 14 minutos, sem diálogos, só piano esparso, cordas intensas, quase sobrenaturais, e som de vento a dilacerar, conta-nos a história de uma perda e ausência na vida de um pai e de filho. Os dois habitam uma casa incrustada num precipício altíssimo, produzem gelo e todos os dias saltam de paraquedas para o vender na aldeia, logo tornando a subir para a sua solidão repetitiva e reconfortante. É uma elegia cheia de ternura, é um assombro, é muito pungente - e onde está a mãe?
a sonhar acordado
"É o meu estudo de relações humanas e ligações familiares", confessa João, formado na ESMAD do Porto e no Royal College of Art, de Londres, ainda banhado de sol. "Aqueles rituais e rotinas diárias são uma metáfora do fundamento humano, e projeto-me na narrativa".
Entre o quarto onde desenha e o palco do Oscar, passaram dois anos para João Gonzalez. Como é que tudo começou? O cineasta fecha os olhos um segundo, abre-os a sorrir. "Como começa sempre, o filme começou todo com uma imagem, uma casa num precipício alto de gelo. A imagem veio-me num sonho e ficou. Comigo é assim, as imagens aparecem-me quando estou quase a adormecer ou já estou mesmo a sonhar. Às vezes também me vêm de dia quando estou a sonhar acordado".