Jornalista, escritor e editor, João Paulo Cotrim morreu este domingo aos 55 anos. Os ilustradores João Fazenda e Nuno Saraiva e o ex vereador da Cultura da C. M. Lisboa, João Soares, reagem à morte.
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Natural de Lisboa, onde nasceu a 13 de março de 1965, João Paulo Cotrim morreu este domingo vítima da covid-19.
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Num percurso singular, repleto de projetos concretizados em múltiplas direções, sobressai um homem de espírito irrequieto, tão capaz de mergulhar no passado, para o recuperar, como de descobrir o melhor do futuro.
Foi dessa forma que dirigiu a Bedeteca de Lisboa, de que foi o grande impulsionador, desde a sua abertura, em 1996, até 2002, "um projeto pioneiro e precursor, não só em Portugal", segundo João Soares, na altura vereador da Cultura da C. M. Lisboa.
Foi também diretor das seis edições do Salão Lisboa de Ilustração e Banda Desenhada durante a mudança de século, criando espaços onde a banda desenhada e a ilustração tiveram um tratamento de excelência, através de inúmeras exposições, algumas das quais comissariou, e a edição de catálogos, que contribuíram para documentar e recuperar muito do património dos quadradinhos portugueses.
Também deu oportunidade a um sem número de novos criadores, em álbuns, na revista "LX Comics" ou na coleção com o mesmo título, tendo a sua atuação sido determinante para uma geração de autores.
Mas João Paulo Cotrim foi muito mais do que a "alma" da banda desenhada nacional durante aquele período e a sua atividade multiplicou-se pelas mais variadas áreas.
No cinema de animação foi guionista de "Fado do Homem Crescido", com Pedro Brito, ou "Sem Querer", com João Fazenda, e dos SPAM Cartoons, curtíssimas animações sobre a atualidade, exibidos na SIC e, mais tarde, na RTP.
No que à escrita diz respeito, foi argumentista de "Salazar, Agora, na Hora da Sua Morte", com desenho de Miguel Rocha; ficcionista em "O Branco das Sombras Chinesas", com António Cabrita; ensaísta em "Stuart: A Rua e o Riso" ou "Rafael Bordalo Pinheiro".
Como cronista, redator ou editor colaborou em inúmeros títulos da imprensa portuguesa e porque acreditava que ainda havia "muitos textos por descobrir, por comentar, por traduzir, enfim, por escrever" e "leitores interessados no jogo da partilha", em 2011 criou a editora Abysmo.
Com "y" como antes da Reforma Ortográfica de 2011 porque, de acordo com um revoltado Teixeira de Pascoaes: "Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mistério... Escrevê-la com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformá-lo numa superfície banal." E João Paulo Cotrim, foi tudo menos banal.
As suas últimas aparições foram há poucas semanas, no Festival Literário Fólio, como organizador da quinzena Jean Moulin e impulsionador do projeto "Cadáver esquisito, uma cerveja literária". Agora, nunca mais vamos ouvir o seu cumprimento afável, "E então, como vai o senhor?"
Depoimentos
"Recebi com imensa tristeza a notícia da morte do João Paulo Cotrim. Éramos grandes amigos, travámos juntos muitas batalhas políticas e culturais. Era um homem bom, de caráter, culto, inteligente, com um grande sentido de humor e muito bem com a vida. Era um tipo formidável."
João Soares, ex-vereador da Cultura da C. M. Lisboa
"Pedem-me um depoimento sobre o amigo que acaba de morrer. Em choque, a primeira palavra que me ocorre é Não. Não sei como. Na imensidão de vidas vividas com o Cotrim abre-se um vazio cheio de nada. É esquisita a sensação, como se me tivessem arrancado um braço, aquele que entrelaça ao outro e nos aperta com força, aquele que nos dá o primeiro abraço e que é o último a largar-nos. Foi assim para mim, para todos nós que tiveram o doce privilégio de o ter, ao Cotrim. Busco as últimas palavras que me dirigiu, há precisamente um mês atrás após uma apresentação de um dos seus loucos e singulares projetos que ilustrei:
- Vou agora atravessar o rio, vens?
- Não. Vou ficar mais bocado.
É tramado ter que ficar."
Nuno Saraiva, ilustrador
"Devo muito ao João Paulo Cotrim e ao que ele fez em prol da BD e da ilustração. Era genuinamente entusiasta por estas áreas, nunca conheci ninguém tão apaixonado pelas pessoas com quem trabalhava e pelos projetos em que se envolvia. Sinto-me órfão como autor e como amigo."
João Fazenda, ilustrador