Com "O Super-Camões", João Pedro George diz ter querido escrever uma biografia de Fernando Pessoa capaz de chegar a todos, até mesmo "os que o conhecem mal", desmentindo ainda a suposta vida vazia e desinteressante do poeta.
Corpo do artigo
Depois de "Puta que os pariu", sobre Luiz Pacheco, João Pedro George reincidiu no género biográfico, ao abraçar um projeto sobre Fernando Pessoa.
Ao longo da investigação para "O Super-Camões", o sociólogo afirma ter-se deparado com um conjunto de elementos demonstrativos do caráter "Intenso e trágico" da vida do mais universal dos escritores portugueses, contrariando a crença de que Pessoa foi sobretudo um homem concentrado por inteiro na construção da sua obra literária.
Durante mais de 70 anos, não foi publicada nenhuma biografia de Fernando Pessoa escrita por um autor português ou a viver em Portugal e, no espaço de seis meses, apareceram duas. É mera coincidência temporal ou reflete um efetivo acréscimo de interesse em redor da sua obra?
Não sei por que razão demorou tanto tempo a surgir uma nova biografia de Fernando Pessoa. Mais estranho ainda se torna se pensarmos que existem em Portugal inúmeros pessoanos, dedicados a esmiuçar todos os aspetos da vida e da obra de Pessoa. Por estarem tão ocupados a olhar para as árvores, talvez não consigam ou não queiram ver a floresta. Ou talvez a biografia não seja o género que mais apreciam. Em relação ao facto de terem surgido duas num intervalo de tempo curto - mais ou menos seis meses, como disse -, foi uma mera coincidência. O Francisco Camacho, da Leya, convidou-me há alguns anos para escrever uma "biografia popular" do Fernando Pessoa. Entretanto, com a pandemia e com outros trabalhos que tinha em mãos, esta biografia tardou a descolar. Não fosse isso, e a minha biografia talvez tivesse saído mesmo antes da outra, assinada por Richard Zenith.
Diria que o público a que se destinam ambas as biografias é muito diferente ou, afinal, convergem na maioria das características?
Da minha resposta anterior se pode inferir que a minha biografia é muito diferente, visa um público não especializado em Fernando Pessoa. Dedica-se tanto aos que já conhecem Fernando Pessoa como a todos os que o conhecem mal. É um livro, digamos assim, transversal a todas as classes, ao alcance de todos os leitores, desde a tia da Quinta da Marinha à mais humilde costureirinha de Arroios, passando pela jovem universitária, liberal, fresca e perfumada; desde a D. Maria, que depois de preencher o IRS se deita no sofá para descontrair, à senhora muito bem vestida que, sentadinha na pastelaria, espera que lhe sirvam uma bica e um copo de água; desde o segurança noturno ou o vigia da construção civil, que leem insones durante a madrugada, ao estudante que vai no comboio rumo aos subúrbios.
Já expressou a ideia, em entrevistas anteriores, que esta sua biografia recusa o jargão literário. Julga que esse academismo afastou muitos leitores da obra de Pessoa e, por isso, é um autor mais falado e citado do que efetivamente lido?
Quem conhece os meus livros saberá reconhecer, espero, que tenho procurado escrever numa linguagem viva e simples. O meu objetivo é puxar os leitores para dentro dos meus livros, agarrá-los pelos cabelos e fazer com que se dissolvam e desapareçam dentro dos livros, evitando assim que os atirem para um canto, sem os voltarem a abrir. A clareza de expressão, ou o brilho da escrita, quanto a mim, não são incompatíveis com o rigor. Tão-pouco a profundidade é sinónimo de obscuridade.
Apesar de haver a ideia instalada de que Pessoa foi um autor sem biografia, ambos os livros impressionam desde logo pela dimensão (mais de mil páginas). Crê que o seu livro ajuda a desfazer de vez esse mito?
Espero que sim. Apesar de ter morrido muito jovem, com 47 anos, Pessoa teve uma vida intensa e trágica: em criança, morreu-lhe o pai e um irmão bebé; conviveu de perto com a tuberculose do pai e com a loucura da avó paterna; foi viver para o outro lado do mundo - África do Sul - com a mãe e o padrasto, quando este foi nomeado cônsul em Durban, cidade cosmopolita por onde passaram (quando Pessoa viveu por lá) homens célebres como Churchill, Mark Twain e Gandhi; quando regressou a Portugal, assistiu de perto à agitação republicana e antimonárquica que conduziu ao Regicídio; conheceu quase todos os grandes intelectuais da sua época, de Teixeira de Pascoaes a Camilo Pessanha, passando por Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros, etc.; circulou pelas grandes tertúlias dos cafés de Lisboa; assistiu à ascensão e queda de inúmeras revoltas e golpes políticos (João Franco, Sidónio Pais, etc.), o último dos quais levaria à implantação do Estado Novo, que Pessoa começou por apreciar para, no final da sua vida, se tornar num crítico da censura e do próprio Salazar, que retrataria como um "pequeno contabilista" que diz que "não devemos sonhar porque o sonho não é remunerado", ou como um "guarda-livros em férias que sente que preferiria afinal estar no escritório". Depois, além disso, a biografia intelectual ou mental de Pessoa abarca tantos mundos e tantas personalidades imaginárias ou fictícias, que muitas outras biografias de Fernando Pessoa, estou certo, surgirão nos próximos anos.
Num mercado como o anglo-saxónico, um autor como Pessoa já teria dezenas de biografias. De que forma a incipiência no meio editorial português e a relativa fraca popularidade das biografias, dificultam o trabalho de quem se propõe fazer um trabalho desta natureza, nomeadamente na falta de meios?
Discordo. A biografia sempre foi um género relativamente popular em Portugal. Em tempos fiz uma listagem das biografias publicadas em Portugal, durante o século XX, e verifiquei que essa é mais uma daquelas ideias falsas que foram postas a circular, provavelmente por algum biógrafo que se quis apresentar como pioneiro do género biográfico no nosso país. E há ainda outro problema: a desconfiança das pessoas em dar entrevistas para biografias, herança talvez da cultura salazarista.
O seu livro ajuda a reforçar a ideia de que Pessoa não era de todo um ser alheio à realidade, que se refugiava apenas no mundo do pensamento. Foi o excesso de ideias e projetos que o impediu de concretizar quase todos os projetos que criou?
Pessoa era uma pessoa sociável que tinha os seus momentos de solidão, como todos nós. Mas, talvez mais do que a maioria, era um indivíduo que se deixava arrastar no turbilhão das suas ideias. A incrível variedade e quantidade de textos que deixou mostram que, sendo um escritor obcecado em construir uma grande obra literária, capaz de destronar todos os seus antecessores, começando pelo próprio Camões, Pessoa era também um homem muito disperso, que deixava muita coisa incompleta e se desbaratava ou desgastava em projetos impossíveis, que abandonava a meio ou que adiava para outra ocasião. Os textos de Fernando Pessoa são energia distribuída em todas as direções, que contrariam uma lei essencial da física: a energia de elevada qualidade é quase sempre uma energia localizada ou circunscrita, e a energia de baixa qualidade é energia dissipada, caoticamente difusa. Quanto mais dispersa, mais a sua qualidade e utilidade se degrada, é energia perdida. No caso de Pessoa, quase tudo o que escreveu contém o gérmen latente de uma criatividade multiforme, de uma fabulosa reserva de energia.
Pessoa era um ser tão complexo que algumas das ideias que defendeu, no campo político ou social, podem causar alguma controvérsia à luz dos dias de hoje. Teme que ele possa vir a ser mais uma das vítimas da cultura do cancelamento?
Há muitos equívocos quer nos críticos dessa cultura do cancelamento, quer nos seus supostos defensores. Tão-pouco existe uma cultura do cancelamento propriamente dita, homogénea e coerente. As pessoas que atacam o politicamente correto prendem-se às suas manifestações excessivas, aos casos extremos de alguns fanáticos. Parece-me um exagero confundir crítica com censura ou com proibição. Quando o filme E Tudo o Vento Levou foi temporariamente retirado da plataforma de streaming HBO Max, para que lhe fosse introduzida uma explicação que contextualizasse o filme, muitos ergueram de imediato o fantasma da Inquisição, do Index ou do Fascismo, conceitos que deveríamos reservar para outro tipo de situações. Duas semanas depois, o filme estava outra vez disponível, com um texto da autoria de Jacqueline Stewart, professora de Estudos de Cinema da Universidade de Chicago e comentadora do canal de filmes clássicos TCM. Nesse texto, ela diz que "o tratamento deste filme através da lente da nostalgia tende a negar os horrores da escravatura, bem como o seu legado de desigualdade racial". E acrescenta: "Ver E Tudo o Vento Levou pode ser desconfortável, até doloroso, mas é importante que os filmes clássicos de Hollywood estejam disponíveis para nós no seu formato original. Não só porque refletem o contexto social em que foram feitos, como permitem aos espetadores meditar sobre os seus próprios valores e convicções, quando agora os veem". O que me parece razoável. Claro que também há, entre os supostos defensores do politicamente correto, uns quantos fanáticos que reagem como o cão de Pavlov, que se tornaram numa espécie de polícias sempre à espreita do mais pequeno deslize, prontos a apontar o dedo a tudo o que possa indiciar o mínimo sinal de racismo, sexismo, homofobia, etc. Gritar lobo muitas vezes sem haver lobo é um erro. Porque de tanto gritar "lobo!", sem que o lobo apareça, as pessoas acabarão por deixar de ligar ao grito, até que um dia aparece mesmo o lobo, sem que ninguém se incomode com isso.
Apesar de todo o esforço que colocou, acha que há uma área da vida e do pensamento de Fernando Pessoa a que, pela sua complexidade ou escassez documental, se torna impossível aceder e compreender?
Por deficiência e ignorância minha, sinto-me pouco habilitado para falar sobre o interesse de Fernando Pessoa no ocultismo, na parapsicologia, no hipnotismo, no espiritismo, etc. A escrita de Pessoa é uma escrita saturada de intelectualismo, mas de um intelectualismo em favor da naturalidade, da espontaneidade e da autenticidade. Talvez as leituras ocultistas fossem uma forma de Pessoa fugir à "gaiola de ferro" da sua extrema racionalidade, elevada até à décima potência. A racionalidade tanto pode ser uma dádiva como uma desgraça, um instrumento de emancipação como uma prisão ou um veneno capaz de destruir a nossa paz interior, impedindo-nos de usufruir das coisas simples da vida, de viver os sentimentos sem os questionar, de captar o "maravilhoso" do quotidiano, de viver com o coração e as tripas, sem pedir à vida explicação nenhuma, como no "Guardador de Rebanhos", de Alberto Caeiro.
Que posição tem acerca da publicação em livro de tudo quanto deixou na famosa arca, incluindo material que aparentemente não acrescentará muito à sua obra?
Se as pessoas comprarem esses livros, é porque eles têm interesse. Não vejo problema nenhum nisso.
A sua anterior investida biográfica foi sobre Luiz Pacheco. Que atributos literários e humanos deve ter, em seu entender, um escritor para lhe dedicar um trabalho tão profundo como estes que desenvolveu?
Pela minha formação em Sociologia, o que me interessa nos indivíduos biografados é a possibilidade de as suas vidas exemplificarem comportamentos gerais de um determinado meio social, num momento particular. Procuro vidas que tenham valor enquanto exemplos do "coletivo" (note-se bem: exemplo não significa, neste contexto, exemplar). Gosto de pensar nos percursos singulares em termos da sua ligação com problemáticas gerais, em que a trajetória de um indivíduo serve para ilustrar um fenómeno global (por exemplo, de uma mentalidade coletiva ou de transição de um tipo de sociedade para outro). Procuro estudar os indivíduos como microcosmos de lógicas e dinâmicas coletivas, tento olhar para as pessoas, não como átomos ou ilhas, mas como produtos complexos de múltiplos processos de socialização e de relações sociais.