E se, afinal, ao contrário do que foi crença aceite durante anos, Fernando Pessoa não foi o exemplo de um escritor sem biografia, apenas focado na construção da obra, mas alguém que teve uma "vida intensa e trágica"?
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A opinião é de João Pedro George, autor da biografia "O Super-Camões", que justifica a convicção com as vicissitudes de uma vida que, embora breve (47 anos), foi pródiga em acontecimentos. Como as mortes precoces do pai e do irmão, a loucura da avó paterna, a mudança na infância para uma cidade cosmopolita como Durban ou o conhecimento que travou com os grandes intelectuais do seu tempo, já para não falar nas convulsões políticas que redundaram num regicídio, implantação da República e criação do Estado Novo.
"A biografia intelectual ou mental de Pessoa abarca tantos mundos e tantas personalidades imaginárias ou fictícias, que muitas outras biografias de Fernando Pessoa surgirão nos próximos anos", opina o sociólogo.
biografias "diferentes"
Os dados mais recentes justificam a sua tese: em seis meses, entre maio e novembro do ano passado, saíram tantas biografias de Pessoa como as lançadas nos últimos 72 anos, da autoria de João Gaspar Simões e António Quadros.
Publicado originalmente no mercado anglo-saxónico, o volume "Pessoa, uma biografia", de Richard Zenith, chegou à terceira edição em cinco meses e foi finalista do Prémio Pulitzer.
Ao cabo de mais de três décadas dedicadas ao estudo da obra do autor de "Mensagem", Zenith mostra-se convencido de que "Pessoa é genial por dizer coisas profundas e originais em palavras simples. Por isso, o seu alcance é universal".
Se ambas as biografias convergem na evidência de que o poeta foi um homem profundamente empenhado nas causas do seu tempo e esteve longe de confinar a sua ação ao mundo da escrita ou do pensamento, o público a que se destinam já causa maior divisão.
Contundente, João Pedro George defende que a sua biografia "é muito diferente", ao visar "um público não especializado". "Dedica-se tanto aos que já conhecem Pessoa como a todos os que o conhecem mal. É um livro, transversal a todas as classes, ao alcance de todos os leitores, afirma, acreditando que "O Super-Camões" "dispensa o jargão literário".
O remoque é rebatido pelo autor de "Biografia, uma pessoa", para quem "os académicos representam, quando muito, 1%" dos seus leitores. "Escrevi para o público em geral, sem pressupor nenhum conhecimento prévio de Pessoa ou da história e da cultura portuguesas por parte dos leitores", enfatiza.
"sociável", mas "só"
Da leitura das biografias, sobram exemplos do pensamento de um homem que, por ser tão complexo, incorria em contradições. Até no campo político. A simpatia inicial que nutria por Salazar foi-se esbatendo até se transformar numa oposição declarada. Os comentários depreciativos sobre a sua figura sucedem-se: de "pequeno contabilista" ao "guarda-livros em férias que sente que preferiria afinal estar no escritório".
Já no final da vida, Pessoa torna-se "mais empenhado politicamente do que nunca", apesar do "certo cansaço intelectual que sentia", aponta Zenith. "Se tivesse vivido mais anos, podia ter-se metido em grandes sarilhos com o Estado Novo", considera o biógrafo.
Ao mergulhar na vida e obra do poeta, João Pedro George diz ter-se deparado com "uma pessoa sociável que tinha os seus momentos de solidão, como todos nós". Havia, no entanto, uma dimensão distinta nos momentos em que se recolhia no seu intimo. "Deixava-se arrastar no turbilhão das suas ideias", argumenta o autor de "Super-Camões".
"Perfecionista" ou um ser "disperso"? Biógrafos divergem no caráter do poeta
A velocidade com que Pessoa criava e desfazia projetos - não apenas no campo literário, mas também empresarial - é uma das surpresas reservadas aos leitores das duas obras agora publicadas.
No entanto, ambos os biógrafos assumem posições distintas quanto à necessidade de o poeta ter sempre novas ideias que, posteriormente, acabavam por não ser colocadas em prática ou eram abandonadas numa fase ainda muito prematura. Se, para João Pedro George, o escritor era sobretudo "um homem muito disperso, que deixava muita coisa incompleta e se desbaratava ou desgastava em projetos impossíveis", Zenith elege outro prisma de análise: "Fernando Pessoa era um perfeccionista, o que o impedia de acabar obras grandes. A perfeição, dizia Pessoa, é possível apenas numa obra curta - num poema lírico, por exemplo".