Realizador português João Salaviza foi anunciado como "brasileiro" por Thierry Frémaux na apresentação dos nomeados de Cannes.
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Bronca de "dimensão diplomática" na apresentação do programa deste ano de Cannes: Thierry Frémaux, delegado-geral e alma do festival há já largos anos, chamou João Salaviza e Renée Nader Messora de realizadores brasileiros. Ora, "A Flor do Buriti", selecionado para Un Certain Regard, foi rodado no Brasil, onde o casal já tinha filmado e apresentado na mesma seção "Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos", mas é uma coprodução com Portugal, com apoio financeiro do ICA - Instituto de Cinema e Audiovisual.
Igualmente, se Messora é na verdade brasileira, João Salaviza não deixa de ser um realizador português. Nascido em Lisboa, onde estudou na Escola Superior de Teatro e Cinema, o erro de Frémaux é tanto mais grave quanto Salaviza venceu a Palma de Ouro de Cannes para curta-metragem com "Arena", em 2009, feito que repetiria em Berlim, com o Urso de Ouro no mesmo formato, três anos mais tarde, com "Rafa". Ambos, filmes estritamente portugueses.
À parte este episódio um pouco caricato, Thierry Frémaux anunciou as linhas gerais da programação oficial de Cannes, indicando para já 19 filmes em competição, a que se juntarão pelo menos mais dois, a anunciar na próxima semana, depois de reveladas as escolhas da Semana da Crítica, dia 17 e da Quinzena dos Cineastas (ex-Quinzena dos Realizadores), no dia seguinte.
Frémaux, que já estivera no mesmo lugar ao lado de Gilles Jacob e Pierre Lescure, esteve acompanhado pela nova presidente do festival, Iris Knobloch que, nas suas palavras de circunstância, recordou o percurso pelos Césars, pelos Óscars e pelas salas de cinema de todo o mundo dos filmes da seleção do ano anterior, sublinhou a posição de Cannes como bandeira de um cinema exigente, recordou os 25 anos que viveu o festival do outro lado - a primeira mulher presidente de Cannes, hoje com 60 anos, tem uma vida ligada à distribuição e trabalhou na delegação francesa da Warner Bros. - e confirmou o renovado Hotel Carlton, ícone de Cannes e do festival, como um espaço que acolherá convidados e eventos desta 76ª edição.
Coube então a Frémaux anunciar os filmes da seleção oficial, sobretudo os títulos em competição, analisada por um júri de que se conhece apenas o seu presidente, o sueco Ruben Ostlund, a beneficiar ainda, literalmente, dos louros da sua dupla Palma de Ouro, com "O Quadrado" e "Triângulo da Tristeza".
Com a seção Un Certain Regard a retomar o seu espirito inicial de descoberta de novos valores, a competição alberga um grande lote de frequentadores habituais do que se pode chamar o "clube" de Cannes, alguns dos quais já vencedores dos seus principais prémios. Mas, se este tipo de seleção é mais conservador e menos arriscado, como não ficar animado com uma seleção oficial onde se encontram os últimos filmes de nomes grandes do cinema mundial como Aki Kaurismaki e Wes Anderson, Kore-eda Hirokazu e Nanni Moretti, Nuri Bilge Ceylan e Marco Bellocchio, Todd Haynes e Wim Wenders, Wang Bing e Ken Loach, a que há a ajuntar ainda Catherine Breillat, Tran Anh Hun, Jessica Husner ou Karim Ainouz.
Wim Wenders e Wang Bing estarão em Cannes em dose dupla, já que têm outro filme num outro espaço da seleção oficial. Entre as Sessões Especiais, Cannes Premiere, Sessões da Meia-Noite e Fora de Competição haverá ainda espaço para o último Scorsese, "Killer of Flower Moon", que a Apple prometeu estrear em sala, e o novo Indiana Jones ou para um muito esperado "Cerrar los Ojos", do espanhol Victor Erice.
Não foi referido por Frémaux, mas estava já anunciada a curta-metragem de Pedro Almodóvar, "Strange Way of Life", um western gay, falando-se ainda de um filme póstumo de Jean-Luc Godard. O festival abre a 16 de Maio, com "Jeanne Du Barry", de Maiwenn, com Johnny Depp no protagonista. O filme francês estreará em sala em todo o país no dia seguinte, sublinhando o serviço que Cannes faz à indústria cinematográfica francesa e aguarda-se com expectativa, pelos motivos óbvios, a presença do ator norte-americano na primeira conferência de imprensa do festival.
Salaviza e Messora retratam história de resistência do povo Krahô.
Depois de "Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos", João Salaviza e Renée Nader Messora continuam a abordar a existência do povo Krahô. Segundo nota difundida pela produção, o filme traz até nós um tema urgente da atualidade: a luta pela terra e as diferentes formas de resistência implementadas pela comunidade da aldeia Pedra Branca, situada na região Tocantins, no centro do Brasil.
"A Flor do Buriti" inicia-se em 1940, quando duas crianças Krahô encontram na escuridão da floresta um boi perigosamente perto da sua aldeia. Era o prenúncio de um violento massacre, perpetuado pelos fazendeiros da região. Em 1969, durante a Ditadura Militar, o Estado Brasileiro incita muitos dos sobreviventes a integrarem uma unidade militar. Hoje, diante de velhas e novas ameaças, os Krahô seguem caminhando sobre a sua terra sangrada, reinventando diariamente as infinitas formas de resistência.
"O filme nasce do desejo em pensar a relação dos Krahô com a terra, pensar em como essa relação vai sendo elaborada pela comunidade através dos tempos. As diferentes violências sofridas pelos Krahô nos últimos 100 anos também alavancaram um movimento de cuidado e reivindicação da terra como bem maior, condição primeira para que a comunidade possa viver dignamente e no exercício pleno de sua cultura", explica a realizadora Renée Nader Messora.
Por seu lado, João Salaviza explica: "Nós não trabalhamos com um argumento fechado. A questão da terra é a espinha dorsal do filme. Propusemos aos "atores" trabalhar a partir desse eixo, criar um filme que pudesse viajar pelos tempos, pela memória, pelos mitos, mas que, ao mesmo tempo, fosse uma construção em aberto realizada enquanto fôssemos filmando. A narrativa foi sendo construída com a Patpro, o Hyjnõ e o Ihjãc, que assinam igualmente o argumento".
"A Flor do Buriti" foi filmado durante quinze meses, em película 16mm, dentro da Terra Indígena Kraholândia, com uma equipa muito reduzida, dividida entre indígenas e não indígenas.
Rui Poças no júri da Semana da Crítica
Uma das duas seções paralelas mais importantes do Festival de Cannes, a par da Quinzena dos Cineastas, nova designação da Quinzena dos Realizadores, a Semana da Crítica, que selecciona primeiras obras e vai conhecer este ano a sua 62ª edição, já revelou o seu júri. Rui Poças, prestigiado diretor de fotografia português, será um dos seus cinco membros. Nascido em 1966 no Porto, é dele a fotografia do recente "Amadeo", de Vicente Alves do Ó, tem trabalhado no Brasil, iluminou com a sua imagem um dos últimos filmes da argentina Lucrecia Martel, "Zama" e é dele a fotografia de "Alma Viva", que a francesa de origem portuguesa, Cristèle Alves Meira, rodou em Trás-os-Montes e teve estreia mundial precisamente na Semana da Crítica do ano passado. Rui Poças terá como presidente a jornalista, argumentista e realizador francesa Audey Diwan, vencedora do Leão de Ouro de Veneza com "O Acontecimento", baseado no livro autobiográfico de Annie Ernaux, e contará ainda ao seu lado com a americana Kim Yutani, programadora de Sundance, o ator alemão Franz Rogowski e a indiana Meenajshi Shedde, curadora e conselheira da programação de Berlim.