Ator e realizador Jorge Vaz Gomes fala de "Soldado Nobre", documentário sobre o seu bisavô que combateu na Grande Guerra. O filme estreia esta quinta-feira.
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Uma fotografia de uma companhia portuguesa em França, durante a Grande Guerra de 1914-18, onde poderia estar o seu bisavô, levou o ator e realizador Jorge Vaz Gomes a realizar "Soldado Nobre". O título refere-se não só à nobreza da missão portuguesa como ao próprio apelido do antepassado do autor do documentário. Ao JN, o realizador falou do seu filme e sobretudo de História, com "H" grande ou pequeno, quando "Soldado Nobre" chega esta quinta-feira às salas de cinema.
Pensa que Portugal trata mal a sua memória histórica?
É uma pergunta muito difícil. Eu posso falar do que sei. A participação dos portugueses na Primeira Guerra Mundial é um assunto especialmente esquecido, mesmo ignorado. Durante o centenário, naqueles quatro anos, tivemos algumas celebrações e um filme, "Soldado Milhões", que deu um ponto de vista sobre o que aconteceu e versa bastante sobre a batalha de La Lys, um acontecimento histórico muito importante, mas rodeado de muita ignorância.
Em que sentido?
As pessoas aprendiam na escola que a participação portuguesa na batalha de La Lys tinha sido um fracasso completo, do ponto de vista militar. Não é bem verdade, isso tinha muito a ver com a narrativa que depois o Estado Novo criou. Mas as histórias de heroísmo, de valentia e de resistência, de uma grande força e uma grande coragem, são comuns a todo o contingente que foi para lá. Os franceses e os ingleses eram rendidos nas trincheiras de dois em dois meses e os portugueses chegavam a passar cinco, seis ou sete meses sem sair. Foi o caso do meu bisavô.
Todos os regimes escrevem afinal a História à medida dos seus interesses...
A memória destes soldados da Primeira Guerra foi mantida e acarinhada em Portugal sobretudo pela sociedade civil, nomeadamente pelas ligas de combatentes, que era quem encomendava os monumentos, quem organizava as cerimónias. O Estado Novo recusava a ideia de que aquilo tinha sido um momento glorioso para Portugal. Essa memória acabou de ficar nas mãos de historiadores, que de certa forma também iam um bocadinho na linha do regime, e ficou na memória das pessoas e dos antigos combatentes. Felizmente ainda chegou um pouco até hoje, mas começa a desaparecer a pouco e pouco.
Fazer este filme na altura do centenário não foi uma coincidência...
Interessava-me bastante fazer este filme nesta altura. Quando comecei apercebi-me que não havia muita gente com memórias dos pais e dos avós. As guerras napoleónicas também mexeram com a Europa inteira, tal como as duas guerras mundiais, e já não existe memória. A memória foi transformada em livros de história. E a Primeira Guerra está ali numa charneira, daqui a alguns anos só nos livros de história.
Aquela fotografia acaba por ser o detonador de todo o filme.
Há uma obsessão por aquela fotografia, sim, mas também percebi que era uma boa oportunidade para falar com pessoas de aldeia que tinham tido pais e avós soldados na Grande Guerra. Algumas sabiam muito pouco porque as pessoas falavam muito pouco, guardavam para si próprias aquilo que foi a guerra, foi profundamente traumática, deve ter sido absolutamente horroroso. Mas sim, há uma memória que não foi muito guardada pelos poderes oficiais, mas que ficou nas pessoas.
Aquela cerimónia que se vê no filme entre os presidentes de Portugal e França é, para não usar outro adjetivo, um pouco simplória... O que é que há mais a fazer para preservar estas memórias?
A ideia do meu filme foi trazer esta história, que é, provavelmente, um dos eventos mais violentos pelo qual cidadãos portugueses passaram nos últimos 150 anos. Mas uma coisa é escrever a história, como disciplina científica, com regras, com o reconhecimento entre pares e que reservamos para os historiadores. Eu não pretendo fazer história, nem fazer historiografia, mas pretendo saber mais sobre o passado. A arte também é um instrumento da análise do passado.
Fale-nos um pouco mais do percurso do seu bisavô...
Foi uma coisa absolutamente traumática, porque ele não morreu lá, como muitos morreram, mas foi gaseado. Nos poucos anos que sobreviveu a seguir à guerra, tinha pesadelos, bebia muito, era violento, Acordava a meio da noite, com pesadelos, a gritar e com falta de ar. Eventualmente foi esse problema que o matou, muito, de forma muito prematura, em 1923, com apenas 26 anos.
Vendo o filme, percebe-se que já tinha começado a filmar há muito tempo. Porque demorou tanto a concluí-lo?
Comecei o filme em 2013. Foi o ano em que a União Europeia ganhou o Nobel da Paz. Como íamos celebrar o centenário da Grande Guerra, achei que não devia ser inocente esta ideia de uma União Europeia que permitisse que isto não voltasse a acontecer. Agora está a acontecer de novo, mas a ideia era boa. E não é todos os dias que se descobre que se tem um bisavô soldado na Primeira Guerra. Comecei a ir aos arquivos, num processo demorado, porque estava a trabalhar em outras coisas ao mesmo tempo. E ainda não havia financiamento, era só uma ideia. Houve uma altura em que não estava a avançar.
Quando é que retomou o projeto?
Em 2018, uma associação em França convidou-me para mostrar a maquete que já tinha filmado. Fizeram a celebração da batalha de La Lys, foi nessa altura o tal evento com os dois presidentes. Andámos a visitar os sítios com um guia lá da zona e conheci um historiador, antigo militar, o tenente-coronel Pedro Marques de Sousa, que se tornou um aliado a tentar descobrir mais coisas. Portanto esta visita em 2018 dá um impulso novo ao filme. Foi mais ou menos por essa altura que consegui finalmente descobrir aquele livro na Biblioteca Nacional, que finalmente permite dar um desfecho à história.
O que é que aprendeu mais durante todo esse tempo?
Foi sobretudo perceber mais ou menos o que era viver naquela altura em Portugal, e o meu bisavô é um sintoma muito claro disso. Era filho ilegítimo, o pai não o perfilhou, a mãe morreu quando ele tinha 16 anos. Pediu para ser alistado no exército, porque não tinha meios para viver. Naquela altura era uma das poucas possibilidades que as pessoas tinham no interior.
Ou iam estudar para o seminário ou iam para a tropa...
Exatamente. E ele teve este azar de ter sido imediatamente alistado, menos de um mês depois de ter escrito a carta, que não deixa de ser de uma eficiência burocrática gigante para 1916, mas teve o azar de passados poucos meses Portugal declarar guerra à Alemanha, em solidariedade com os ingleses. Portugal estava cheio de vontade de participar na guerra, como jovem república queria afirmar-se no plano internacional. Foram cerca de 70 mil portugueses para aquela frente de batalha que os ingleses estavam a gerir.
Para a nossa dimensão, 70 mil era um número significativo...
Ficaram a ocupar dois ou três quilómetros de linha, pouco mais. Os dois batalhões que era suposto formarem-se lá, nunca chegaram a estar completos. Para além da miséria toda e da pobreza, o meu bisavô e pelo menos mais 70 mil homens e famílias, levaram com esta carruagem da história, da grande história, em cima.
Como é que eles foram preparados para o que iam encontrar?
Não sei se o meu bisavô chega a ir para Tancos, onde estavam a preparar as tropas. A República gabava-se de que conseguiam preparar tropas num tempo recorde. É mentira, eles depois chegavam lá e nem sequer sabiam usar uma máscara de gás, muito tinham zero experiência de guerra de trincheiras, foi muito difícil para eles.
Quando se mete na farda de um soldado, é a sua costela de ator a vir ao de cima?
É uma boa questão, ainda hoje não sei muito bem porque é que faz sentido fazer aquilo. Queríamos que o filme tivesse um dispositivo um bocadinho menos formal, não tão clássico, não tão em entrevistas, imagens, precisávamos de criar um ambiente diferente. São planos que acabam por ter um lado de sonho, do que era aquilo. E foi importante para mim representar essas cenas, com aquelas roupas, senti mais a filmagem quando recriei esses momentos.
Esses momentos fazem-nos sentir naquela época...
Não há um cuidado de recriação histórica, é mais a criação de um determinado ambiente, de uma determinada sensação que estávamos à procura e acho que funciona minimamente bem. É um dos problemas do documentário, do documentário de história, esse lado pesado, de um dispositivo básico. Acaba por fatigar um bocadinho. Sim, acho que torna o dispositivo mais interessante para o próprio espectador.
O filme estreia agora em sala. Estão previstas outras sessões especiais?
Vamos estrear no Cinema City Alvalade e na Casa do Cinema de Coimbra. Vai estar a semana toda e depois, em função dos números, vamos continuar. Temos também, algumas respostas positivas de cineclubes e auditórios um pouco espalhados por todo o país. Acredito que à medida que o filme for saindo também vai chamando mais atenção. Estou convencido de que há muita gente interessada neste tema. Há imensos grupos de Facebook especializados no Corpo Expedicionário Português.
Já teve algumas reações, agora que se sabe que o filme vai estrear?
Tenho recebido mensagens todos os dias de pessoas a dizer que o avô também esteve na guerra. Este filme para essas pessoas todas também. Para vermos o que foi esta altura, quem foram estas pessoas e o que passaram. Mas é também uma forma de redenção para outras pessoas que tiveram antepassados lá, porque a história nunca foi contada. Que sintam o seu passado também valorizado, o seu passado familiar.