Escritor colombiano analisa a História recente do seu país no novo livro "Canções para o incêndio".
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O tom pausado, quase cerimonioso, com que Juan Gabriel Vásquez fala não podia estar mais distante dos ecos de violência - física e psicológica - que encontramos nos seus livros, ecos da guerra que assolou a sua Colômbia durante 50 anos. O seu livro mais recente publicado em Portugal, "Canções para o incêndio", assenta num conjunto de histórias curtas habitadas pela memória, perda e dor. "O passado nunca é passado", diz o escritor colombiano, parafraseando William Faulkner, um dos seus mestres da escrita.
A Colômbia continua a ser um país a ferro e fogo, como o título do livro deixa antever?
A Colômbia é um país complexo e contraditório, no qual a violência continua a marcar as vidas. Nesta altura, temos vindo a refletir sobre o que se passou nos últimos 50 anos de guerra e a literatura faz parte do processo de reflexão. Desde sempre, a literatura colombiana fez eco da violência. O primeiro grande romance do século XX, "A voragem", tem essa palavra inscrita logo na primeira frase.
A América do Sul é sempre vista como um território de futuro, mas as dificuldades teimam em não abandonar estes países. Há futuro a mais e presente a menos?
Estamos a passar por um momento de transformação em todo o continente. O atual Governo da Colômbia é o primeiro de Esquerda em toda a sua história. É uma sociedade marcada por divisões, polarizações e os escritores estão a tratar de dar conta dessa mudança. O nosso trabalho é uma herança do boom latino-americano, com escritores como Mario Vargas Llosa, Gabriel García Marquéz ou Carlos Fuentes, que pensaram nos nossos países e recuperaram para todos nós, cidadãos, o poder das nossas próprias histórias.
Os efeitos da guerra são mais duradouros do que os da paz?
Creio que sim. Na Colômbia, depois do acordo com as guerrilhas das FARC, a grande questão coletiva passou a ser averiguar o que se passou nos 50 anos de guerra para saber como construir a paz. Não podes avançar para essa construção sem saber o que ocorreu durante a guerra. O que se nota é que há muitos setores da sociedade que não querem que se recorde e se revele o que se passou. Por isso, temos vindo a assistir a uma tensão entre o esquecimento e a memória. A literatura é uma força de memória e nem todos querem que esse papel seja exercido.
O que é que a literatura traz de novo para essa discussão?
O jornalismo e a História são indispensáveis para entendermos o passado de um país, mas há recantos da memória a que não conseguem chegar, porque ocorrem em partes ocultas do ser humano ou então pela falta de provas e documentos. Trata-se de emoções e não de dados. É disto que se ocupa a literatura. Fala de uma dimensão interior, moral, à qual a História e o jornalismo não têm acesso. O retrato total do passado de um país é feito de cifras, êxitos públicos, mas também emoções, mudanças de mentalidade, sentimentos subjetivos. Sem isso, não podemos entender tudo.
Nota que os colombianos procuram a literatura para esse maior conhecimento?
Não sei. Há uma necessidade de as pessoas contarem a sua história e de que ela seja reconhecida. Fiquei com essa convicção depois de falar com muitas vítimas das guerrilhas, tanto da Esquerda como da Direita e até do próprio Estado. Para elas, é muito importante assumirem que sofreram e verem que essa mensagem é conhecida. Os acordos de paz produziram a criação de uma instituição chamada Comissão da Verdade, em que qualquer pessoa pode contar a sua versão da guerra. Isso é profundamente necessário.
Ter vivido muitos anos fora do seu país não o afastou da realidade. Em que medida a distância pode favorecer a lucidez?
Quando saí da Colômbia, em 1996, sentia que não conhecia o meu país. Não me sentia capaz de escrever com autoridade sobre o que lá se passava. Foi nos anos da distância, quando vivi em Espanha e França, que me dei conta de que não entender o meu país não era um obstáculo para escrever sobre ele. Era a razão para escrever. Escrevo sobre o que não entendo; faço-o para averiguar, investigar. Foi a partir daí que iniciei a escrita dos meus romances, que partem todos da sensação de entender lentamente algo mais sobre o país, mas nunca entendê-lo na totalidade. Isto devo à distância.
Muitas das personagens do livro convergem na tentativa de fuga do passado. É um esforço inútil?
O passado tem uma capacidade misteriosa para voltar às nossas vidas de forma involuntária. A questão principal que estes contos levantam é se podemos livrar-nos do passado ou estaremos condenados a ser perseguidos pelo que fizemos ou não fizemos? Como dizia Faulkner num romance, o passado nunca passou. Não passou nem jamais é passado.
A busca das origens da violência é um dos principais esforços que faz através dos seus livros. Crê estar hoje mais perto da resposta a essa pergunta?
Tchékhov já dizia que a função do escritor não é tanto encontrar as respostas como formular as perguntas certas. Creio que, através das perguntas certas, chegamos a uma espécie de iluminação, entendendo cada vez mais um pouco. Mas não há respostas definitivas na literatura.