Livro de Julião, autor portuense que viveu quase sempre na marginalidade, está na segunda edição.
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A escrita foi sempre a única companhia fiel de Júlio Alberto Allen Vidal (1955-2021), poeta assumidamente marginal cuja antologia póstuma publicada pela Apuro já está na segunda edição. Conhecido por Julião por todos os que com ele lidavam, transportou para a sua poesia uma vida feita de errância mas também de uma liberdade inegociável.
A unir os incontáveis empregos que foi acumulando (pastor de cabras na Galiza, vindimador em França, vendedor de enciclopédias porta a porta, porteiro de um prédio, trolha...), esteve sempre a paixão maior pela poesia, por demais evidente nos 71 cadernos que confiou pouco antes de morrer à associação cultural e filantrópica dirigida pelo ator e encenador Rui Spranger.
Ao longo de dois anos, Bernardo Guerra Machado, responsável pela seleção dos escritos, mergulhou nesse universo literário, dividindo-os em três núcleos: os intimistas, os espirituais e os mais marginais.
Nascido no Porto, Júlio acompanharia a família na mudança para Angola, onde o contacto com a obra de poetas e músicos censurados na “metrópole” acabaria por rasgar-lhe os horizontes. Em 1975, a família Allen Vidal foi uma das centenas de milhar que formaria o rol dos chamados “retornados”. Quando regressou ao Porto em 1978, depois de três anos em Vila Franca de Xira, a dependência da heroína já se tinha apoderado do corpo e da mente, acelerando a sua exclusão social, apesar do apoio constante da mãe.
A escrita, sempre
Muito influenciado pelos autores “beat”, como Allen Ginsberg, chegou a publicar em três ocasiões: os dois primeiros livros, “Flores, paz e cinzas (1984) e “Outono ou a primavera da vida” (1993), em edições de autor financiadas por familiares e amigos, e o derradeiro, “Autoestrada discurso de um homem livre” (2008), por uma editora de vida efémera. Paralelamente, desdobrou-se em colaborações em revistas de escassa circulação, sem nunca deixar de tentar, todavia, a publicação em editoras convencionais, sempre sem sucesso.
Nada que o preocupasse em demasia, como deixou expresso numa das suas milhares de notas dispersas: “Se eu morrer não há azar, as palavras e a obra ficam. As minhas palavras são as minhas atitudes e os meus livros as minhas memórias”.
Oscilando com frequência entre a absoluta grandeza e os delírios de grandeza, os escritos de Julião refletem também essa bipolaridade. O organizador da edição situa os anos 70 como o período mais criativo e fértil (chegou a escrever uma ópera-rock, em colaboração com um amigo) e lamenta que autor não tenha tido a seu lado a figura de um editor ou equivalente que o ajudasse a filtrar a intensa labuta poética. “Por vezes encontramos um poema genial, mas, chegados à última linha, tudo parece desabar, diz. “
À espera que a antologia póstuma agora publicada consiga despertar a atenção dos académicos e investigadores, Bernardo Guerra Machado estreitou ainda mais os laços com Julião ao ser premiado (com Gonçalo Tavares e Sofia Bodas Carvalho) na Mostra de Jovens Criadores com um trabalho baseado em textos do poeta. “É irónico que esse reconhecimento venha da obra de alguém que nunca a teve”, observa.
Colaborador assíduo da Página do Leitor do JN
Durante anos a fio, com particular incidência entre os anos de 1994 e 2003, Julião escreveu com regularidade na Página do Leitor do “Jornal de Notícias”. No espólio legado à Apuro, abundam os recortes do jornal com os seus poemas e artigos de opinião.
Nestas largas dezenas de textos, o tema da guerra era, de longe, o mais abordado, com o poeta, muito marcado pelos anos de conflito vividos em Angola, entre 1970 e 1975, a zurzir os líderes políticos pela insistência em soluções militares.
Data desse período de colaboração uma greve de fome feita por Julião em frente ao edifício do JN, na Rua Gonçalo Cristóvão, com a qual queria chamar a atenção da opinião pública para a urgência da paz no Mundo. No seu manifesto, dizia querer dedicar o seu ato “ao povo de Timor Leste, que se bate para se libertar do jugo da Indonésia”, lembrando ainda o povo angolano, as Malvinas inglesas, o 25 de Abril, ao mesmo tempo que solicitava “um apoio económico para a minha vida dedicada à escrita”.