Julia De Simone fala de “Praia Formosa”, já em cinemas de todo o país.
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Ensaio sobre a escravatura, ontem como hoje, centrado no retrato de Muanza, que deambula por locais do passado no Rio de Janeiro contemporâneo, “Praia Formosa” é uma coprodução entre o Brasil e Portugal e tem como protagonista Lucília Raimundo, atriz, coreógrafa e performer, nascida em Moçambique mas com a maior parte da sua vida passada em Portugal. A realizadora brasileira Julia De Simone veio a Portugal apresentar algumas das sessões do filme e esteve a conversar com o JN.
Qual a importância de fazer hoje um filme sobre a escravatura?
É um assunto muito pouco discutido no cinema. Não só no Brasil mas aqui em Portugal também. Não só a escravatura mas a forma como olhamos para ela hoje. O filme dedica-se a pensar que vestígios estão presentes hoje em dia na cidade. Não é um filme histórico a mostrar o que foi a escravatura há duzentos anos atrás, mas sim quais são os reflexos dela hoje, no nosso quotidiano, na nossa contemporaneidade.
E que sinais são esse que encontrou?
Há muitos e o filme detém-se em alguns. O nosso ponto de partida foi pensar como é que o nosso tecido urbano está a revelá-lo. E como é que as transformações urbanas insistem no apagamento histórico. Desde a invasão portuguesa que isto é uma repetição, na forma de pensar a cidade, de se organizar socialmente. Foi isso que me atraiu.
Pode partilhar alguns exemplos concretos?
Percebi que o Projeto Maravilha, um projeto de reabilitação urbana na região portuária do Rio de Janeiro estava a reafirmar esses mesmos gestos, com um desejo de progresso linear, apontando para um futuro ideal. O que vem em frente apaga o que está para trás, existe sempre uma tábua rasa da História. Isso fica muito evidente no tecido urbano.
O que foi destruído, de relevância histórica?
Quando essas obras encontraram o Cais do Valongo, com vestígios arqueológicos que remontam ao período da escravidão, estas coisas ficaram muito mais evidentes, coisas que o Rio de Janeiro nunca tinha ouvido falar a vida inteira. Comecei então uma pesquisa histórica, para tentar perceber isto um pouco melhor e fui percebendo a materialidade desses vestígios. Os casarões da região portuária estão de pé até hoje, são de facto os lugares onde as pessoas eram vendidas.
Felizmente então que alguma coisa sobreviveu, para que se recolham essas memórias…
O Instituto dos Pretos Novos, um sítio arqueológico, era uma vala comum, para onde os escravizados que chegavam já muito doentes ou já mortos eram atirados. Isso está lá, ainda se veem os ossos. Para além de toda uma questão simbólica, social e política, o lado concreto dos vestígios foi para mim muito chocante.
Foi todo esse trabalho de pesquisa e reflexão que a levaram a conceber a estrutura narrativa do filme?
Na primeira abertura desse sítio arqueológico, o Cais do Valongo, que é de 1843. Alguns anos depois foi reformado, para receber a Imperatriz Teresa Cristina, que vinha casar com D. Pedro I. Depois, esse porto foi soterrado, para ser deslocado um pouco mais para a frente. Então, existia uma materialidade geológica, de camadas de tempo, de sobreposição dos tempos. A construção da história passou por perceber que todos esses tempos coexistem. Aqueles espaços contêm todas essas histórias. Não ficaram para trás, estão ali.
De onde vem a origem da personagem central da história?
Os povos Bantu foram os primeiro a vir escravizados para o Brasil colonial. Existe uma cosmologia e uma perceção do tempo Bantu que é o tempo em espiral. Foge da estrutura branca, ocidental, que nos dá o tempo sucessivamente, numa linha reta. Ali, as temporalidades estão em conexão, sempre voltando, mas voltando sempre de uma forma diferente. Isso foi um pouco o exercício da construção narrativa. O desejo é olhar para a cidade pensando que tudo aquilo faz parte dela.
A Muanza é um conglomerado de várias personagens distintas?
Quando comecei a pesquisa histórica sobre aquele local e que corpos o tinham ocupado durante os anos da colonização, ficou muito evidente que havia um limite histórico. As histórias das pessoas negras, escravizadas, não estão na historiografia oficial. Ou só estão numa ótica da violência, da opressão. Era preciso ficcionar essas figuras, a partir dos relatos e das relações que fomos estabelecendo com as pessoas da região portuária.
Existem outras referências importantes, em outros meios de expressão, como a literatura?
Há um livro, “Um Defeito de Cor”, da Ana Maria Gonçalves, que é fundamental no Brasil hoje. Mudou bastante a perspetiva como nos percebemos como era o quotidiano, a existência, as relações afetivas e sociais das pessoas escravizadas no período colonial. São pequenos grãos e gestos que fomos colhendo para a construção da personagem da Muanza.
E a Lucília Raimundo, como é que a descobriram?
O encontro com ela foi fantástico. Nós tínhamos uma coprodução com Portugal e sempre achei muito importante que essa atriz não fosse do Brasil. Que estivesse também a atravessar esta rota, reconhecendo o Rio de Janeiro de uma outra forma. Começámos uma pesquisa de elenco em Portugal e chegámos à Lucília. Foi um encontro muito forte, porque ela tem naturalmente uma forma de interpretação e de expressão performativa. Tem um grande domínio do corpo, porque também dança, além do teatro e do cinema.
E o trabalho com ela, como decorreu?
Ela tem um registo de atuação não naturalista, que era o que me interessava para esta personagem. Ela chegou ao filme com muita força e com muita capacidade de concentrar no corpo, nos pequenos gestos, na veia do pescoço, tudo o que aquela mulher está a sentir.
A coprodução com Portugal é desde logo um gesto quase simbólico, com todos estes fluxos históricos que parecem confluir até chegar aqui.
Era muito óbvio. O desejo é que as coproduções troquem em assuntos comuns aos dois países, o que nem sempre acontece. Neste caso foi possível, fazia muito sentido. O projeto já foi todo escrito a pensar nessa colaboração bilateral. Não foi só a gestão económica e financeira, foram mesmo trocas. A Lucília Raimundo, a Maria d’Aires, a relação com a produtora Filipa Reis, toda a equipa de finalização, que foi feita aqui em Portugal. Foi uma experiência muito partilhada.
O cinema brasileiro vive um grande momento. Tem atravessado grandes crises mas consegue sempre revitalizar-se.
Eu faço parte de uma geração que começou a fazer cinema a partir de 2010. Num momento muito específico do cinema brasileiro, de centralização de recursos a partir do primeiro governo Lula, que fez despontar cinema em muitos outros lugares do Brasil, para além do Rio e de São Paulo. Uma política que trouxe um cinema brasileiro muito diverso e muito mais rico e inventivo. Diferente do cinema brasileiro da retomada dos anos de 1990. O cinema brasileiro tem muitas possibilidads de reinvenção.