A tradução à letra do título original é “Vinte Deuses”, uma expressão difamatória do calão do Jura, onde o filme se passa. Para título internacional, optou-se por “Holy Cow”. O distribuidor português suavizou o título para “Amor e Queijo”.
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Mas há dos dois neste belo filme de estreia de Louise Courvoisier, sobre um jovem de 18 anos, imaturo, que de repente tem de tomar conta da quinta e da irmã mais nova, e participar num concurso de produção de queijos, ao mesmo tempo que descobre o amor. O filme ganhou um prémio em Cannes e venceu dois Césars, entre os quais de Melhor Primeiro Filme. Estivemos a conversar com a realizadora.
Que relação é que tem com a região do Jura?
Eu nasci em Genebra e venho de uma família multicultural. A minha mãe é canadiana e alemã e habituada a conhecer o mundo, porque o pai dela viajava muito. Acabaram por se instalar no Jura, eu tinha seis meses. Éramos quatro irmãos e irmãs. Cresci numa quinta que ao princípio não tinha nem água, nem eletricidade. A casa mais próxima era a vários quilómetros. Vivemos alguns anos nessas condições rústicas. Mas tenho boas recordações desse período da minha vida.
Conhece então muito bem o meio agrícola que representa no filme.
Os meus pais não eram antes, mas tornaram-se agricultores. Sempre tivemos um pé no artístico e outro na terra. Mas não era queijo, eram cereais. Aos 16 anos tive vontade de partir, de ver outras coisas. Escolhi a opção cinema, que não havia na escola mais próxima. Mas foi um pouco por acaso, porque não tinha nenhuma relação particular com o cinema. Os meus pais não eram cinéfilos, não havia cinema à nossa volta. Foi quase por acidente que comecei a ver filmes e depois a fazer curtas-metragens.
O que a levou a retratar esse meio na sua primeira longa-metragem?
Voltei rapidamente para lá, nunca me quis instalar na cidade. Percebi que há um grande fosso entre a vida rural e a vida citadina. E que há muitos fantasmas e lugares-comuns sobre como se vive no campo. E também na cidade. É preciso uma ponte entre os dois mundos. Quis falar dessa juventude que conheço muito bem, mas que é muito mal representada no cinema.
Qual foi a sua abordagem, para colmatar essa falta de visibilidade?
Não quis julgar aquelas pessoas, mas falar do seu interior, como eu o conheço. Mas também sem dar um olhar miserabilista. Quis fazer um filme generoso e luminoso. Divertido, também, mas sem esconder os lugares mais rudes. E achei que fazer uma história sobre o queijo seria uma boa forma de retirar aquelas personagens do real e trazê-las para a ficção. Queria transformar aquelas pessoas em heróis de cinema.
Como é que escolheu os atores, nomeadamente os principais?
São todos não profissionais. Escolhi-os em castings selvagens, aqui e ali. O Clément trabalha num aviário, os frangos fazem parte da vida dele. A primeira vez que falei com o Clément disse-me que não estava interessado. A personagem também é um pouco assim. Disse-lhe que se mudasse de opinião podia vir ver-me. Apareceu, mas queria ser apenas figurante. Depois já queria um papel mais importante e quando o convidei para o papel principal disse-me que não havia inconveniente. Houve várias situações assim.
Porque optou unicamente por não profissionais?
É verdade que esta aventura do cinema está muito longe da vida deles. Mas não tinha outra escolha senão trabalhar com eles. Contar este território, com as pessoas que nele vivem, mostra outra coisa. Pela forma como se movem, como falam, o sotaque, tudo o que é deles, já conta uma história. Para um filme que é sobre um território, seria absurdo fazer batota.
Diria que as três figuras femininas do filme representam três idades da sua vida?
A ideia é interessante, mas não foi nada assim que as pensei. Pode ter sido algo de inconsciente. Escrevi essas personagens de forma meticulosa, queria mostrar a sua feminilidade, a sua sexualidade, mas sem o fazer de uma forma teórica. Quis ultrapassar o tipo de representação feminina que vemos com muita frequência. De tanto querer mostrar mulheres fortes, acaba-se por mostrá-las sem defeitos, o que não acontece na realidade. Queria mostrar a beleza dessas mulheres, sem necessariamente as sexualizar.
O queijo também é uma das personagens do filme…
Na região, a indústria do queijo é omnipresente, toda a gente sabe mais ou menos como fabricar o Comté. Mas filmar o queijo parecia feio a todos os financiadores, era sempre a primeira questão que me colocavam. É verdade que eu também tinha esse medo. Podíamos ter feito batota, mas não quisemos. Queria que a feitura do queijo fosse algo de religioso, ou sensual. Acabámos por fazer o queijo de verdade e fomos à procura de pequenos detalhes, gestos, olhares, a própria matéria. E finalmente ficámos muito contentes com a cena.
Há vários filmes passados no Jura, neste momento.
É só uma coincidência que nos dois últimos anos tenham aparecido vários filmes sobre o Jura. É verdade que tem havido muitos filmes que se passam em regiões muito diferentes. Mostra que se está a sair de Paris para fazer cinema, não há mal nenhum nisso.
De que tipo de cinema se alimentou, para esta sua primeira obra?
Não tenho grandes influências, embora fale muito no western, no grão da imagem. Foi uma estética mais americana que me deu vontade de mostrar esta vida. Também tentei manter um equilíbrio entre humor e drama, sem estar nunca completamente nem num nem noutro, com personagens cheias de defeitos, o que vem mais da tradição inglesa. O Ken Loach faz isso muito bem. Mas não foi a cinefilia que me levou ao cinema, não quis imitar ninguém, talvez seja por isso que o meu filme é difícil de classificar.
Um primeiro filme e logo a estreia em Cannes…
Foi uma bela vitrina para começar. Mas nem me apercebi bem do impacto, porque não vivo em Paris nem frequento o mundo do cinema. Foi tudo novo e fiquei muito contente de não fazer nenhum compromisso, de fazer o filme como queria. Que diga alguma coisa às pessoas foi um presente. Que tenha tido um público popular, que é o público do filme. Seria um fracasso se não tivesse encontrado esse público, como é o caso de muitos filmes, que ficam com um público muito cinéfilo e elitista.
E agora, para onde vai o seu cinema?
Não tenho regras, não me vou proibir de nada. O segundo filme é sempre uma armadilha, é preciso manter o mesmo desejo, o mesmo instinto. Não se trair, mas ao mesmo tempo não tentar fazer outra vez o mesmo filme, não fazer o que as pessoas estão à espera. Querer agradar aos outros é a armadilha absoluta. Para o meu segundo filme, é preciso que encontre a mesma necessidade de o fazer. Mas pode ser completamente diferente. Não tenho medo de mudar de registo.
Mas já sente a pressão de produtores e de cadeias de televisão para fazer o segundo?
Há uma pressão muito forte, mas como eu moro no Jura, estou protegida por uma espécie de bolha. É por isso que ainda não comecei a escrever nada, enquanto toda a gente está a olhar para mim. Preciso que ninguém esteja a olhar para mim, para encontrar o meu caminho.