"Picos e vales", o mais recente disco de Márcia, vai ser finalmente apresentado no Porto: é já neste domingo na Casa da Música. Um regresso que satisfaz a cantautora, para quem o púbico portuense apresenta "uma paixão mais aguerrida".
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Qual é a sensação de regressar aos palcos do Porto já neste sábado?
Eu apresentei todos os meus discos no Porto. O meu primeiro EP foi apresentado no Porto, em primeira mão. Só que, quando lançámos o meu sexto álbum em 2022 e começámos planear a 'tour', o Porto ficou por marcar. Estava com uma grande dor de não vir cá e, por isso, quando surgiu a oportunidade de ir à Casa da Música, logo no Dia Mundial da Música fiquei muito contente. Sou sempre tão bem recebida.
O que lhe parece o público do Porto?
A energia do público do Porto transparece através de uma paixão mais aguerrida. A verdade é que sinto uns arrepios diferentes. Eu não sou agarrada aos sítios onde nasci ou cresci. Gosto de muitos sítios do meu país, do mundo e não posso menosprezar o meu público de Lisboa, que me apoia tanto. Mas todos os públicos são diferentes. No Porto, os concertos são mais intensos, alías, é tudo muito mais intenso. Desde que lancei o disco, que muito gente me pediu para vir cá e estou muito contente por esta oportunidade ter aparecido. Eu adoro vir ao Porto e venho sempre um dia antes para passear.
Como tem sido o regresso aos palcos?
Temos passado uma fase muito estranha em termos coletivos. Engraçado, porque estou a lembrar-me de uma entrevista do Bernardo Mendonça ao Valter Hugo Mãe, em que ele lhe pergunta - achas que isto vai ficar melhor depois da pandemia? - E ele responde: acho que não, porque as pessoas vão sentir que lhes devem algo. Sinto que nós corremos demasiado, que não sentimos legitimidade em parar, quando o mundo nos manda parar. Por isso, nesse sentido, adorei voltar aos palcos depois da pandemia. Voltar trouxe-me felicidade. Desde que seja para usufruir, estou sempre feliz e acho que consegui fazer isso ao longo da minha carreira.”
Vai haver alguma surpresa no concerto de 1 de outubro?
Sempre que trago um disco novo, sinto sempre que a ligação com o público é diferente. As pessoas relacionam-se muito com os textos das minhas canções, o que para mim foi um lugar que me custou muito a conquistar, mas onde eu adoro estar. Aquilo que eu escrevo, para mim é sagrado, é muito importante e eu sei que o meu público valoriza isso. A sensação de entrega é tão grande, a partilha entre artista e público é tão grande, que eu sinto que há sempre algo de novo. A surpresa é diferente de público para público, porque a comunhão é sempre distinta e única. O que é surpreendente é que tu consegues surpreender sempre. O público não sei se sente o mesmo, mas eu consigo surpreender-me sempre. É sempre algo tão rico. É como ter uma boa conversa.
Como descreve este novo álbum, “Picos e Vales”?
Conta histórias difíceis. Dos altos e baixos, que eu acho que nós todos passamos como pessoas. Eu sou uma bocado avessa a este conceito de figura pública, acho que nós somos todos seres humanos. Tive um cancro em 2021 e tornei isso público. Para mim era importante mostrar que eu também fico doente e que eu também passo maus momentos. A vida é feita de isto, de altos e baixos e vai-se aprendendo que os altos não desvalorizam os baixos e que os baixos conseguem ser um bocadinho mais altos. Para isso é preciso haver muita honestidade, para passares bem os baixos e para eles não te prenderem. Que nada te prenda no passado, nos momentos mais tristes, nos vales. Sonoramente aventurei-me um bocadinho por géneros que queria experimentar. Fui eu que produzi o disco todo. Se está bem ou não está bem, falamos daqui a dez anos. É um disco que na verdade é um pouco marciano. Acho que a canção “Força de Fera” descreve bem este conceito, porque foi uma canção que só ao longo desta tour é que percebi que era sobre uma relação abusiva. Quando estou a escrever, a compor uma canção, eu não tenho perfeita noção do que é que estou a falar e eu acho isso mágico na música. A música resolve-te muito a cabeça. Nós às vezes até simpatizamos com uma canção, e não percebemos o que é que a canção nos está a dizer de nós próprios.
Sente que o álbum está a ser bem recebido pelo público?
A vida é toda uma ilusão quando tu tentas perceber aquilo que as pessoas pensam de ti. A resposta certa é não sei, mas tenho muitas pessoas que me escrevem e que me dizem onde é que o álbum ecoou com elas. São ecos muito profundos, muito emocionais e é a isso que eu dou mais valor, mas não consigo contabilizar. A minha perceção é que as minhas canções se tornam muito especiais para todos os meus ouvintes. Acho que não é um disco com um impacto massivo. É um impacto muito personalizado e pessoal, muito profundo.
Depois destes 14 anos de carreira qual é que foi o momento mais impactante?
“O meu momento mais impactante foi muito antes do começo da minha carreira. Tinha 18 anos quando atuei no meu primeiro concerto. O concerto onde eu fiquei quieta, no meu banquinho, a cantar, como um passarinho, sossegadinha. Esta continua a ser uma imagem que me diz muito da minha postura. Eu tive que fazer um grande exercício para conseguir estar em palco. Sempre tive essa dificuldade e foi uma conquista muito grande ultrapassar as minhas inseguranças. Contudo, com o passar dos anos, foi o próprio público que me deu o à vontade em palco. O meu público começou a escrever-me e eu apercebi-me que éramos amigos, ninguém está aqui para julgar ninguém.”
Sentes muitas diferenças entre o início da tua carreira para o agora?
Ui, tanta coisa mudou. Há mais mulheres a representarem música portuguesa e eu pedi muito que isso mudasse, porque é bom para todas as mulheres, para todo o país e para toda a gente. O instagram mudou muito o mundo. A comunicação mudou, a nossa forma de comunicarmos mudou. A forma como o artista se apresenta mudou, como se descreve mudou. Algo muito nocivo que aumentou foi a imitação. Eu vim de um curso de pintura de belas artes, onde nós aprendemos que os artistas é que influenciaram a moda. Hoje em dia os artistas são influenciados pelo grande público e pelas tendências das redes sociais. Isso é uma deturpação que me deixa incomodada. Deixou de existir questionamento e imita-se quase tudo. É preciso o artista ter um grande jogo de cintura e noções daquilo que estamos aqui para dizer. Hoje em dia é muito fácil nos desviarmos do nosso propósito. Há muitas correntes a manipular o nosso pensamento. Faz falta a literatura, ler, ouvir a própria voz, em vez de se ver “reels” em que a voz é sempre a mesma. Há muito ruído e cada vez temos de ter mais força para superarmos essa manipulação.”
A representação da música portuguesa da rádio continua igual ou houve melhoria?
Nós lutamos pelos 30% da quota e acho que cada vez que queremos a mudança temos que forçar um bocadinho. Não podemos obrigar a mudança enquanto não mostrarmos que a mudança é positiva. Era tão bom para o país haver mais artistas portugueses. Toda a receita que existe, que nós geramos, se apenas ouvirmos música estrangeira vai toda para fora e não fica nada para os portugueses. Há uma grande falta de autoestima coletiva em Portugal. Eu gostava que isso mudasse no meu país, que as pessoas gostassem mais de elas próprias.
O que é que vem aí?
Sempre a mesma coisa, sempre diferente, mas sempre igual. Estou a trabalhar sempre. Por exemplo, para mim ir de férias é a melhor altura para trabalhar, porque eu adoro aquele silêncio. O silêncio faz-me compor imenso, faz-me escrever, faz-me sentir muito em comunhão com a natureza. O silêncio faz-me compor imenso, faz-me escrever, faz-me sentir muito em comunhão com a natureza. Que é algo que as pessoas menosprezam imenso, como se fosse uma coisa secundária. Nós fazemos parte da natureza. Quando eu estou em contacto com a natureza escrevo muito mais. Estou sempre a compor, por isso estou ansiosa para o passo seguinte. Mas agora vou desfrutar deste. Tudo a seu tempo. Vou desfrutar das datas a seguir à Casa da Música. Tenho tantas ainda até ao final do ano. Sou livre para fazer o que eu quiser e eu gosto disso. Esta liberdade entusiasma-me. Por isso, o que eu vou fazer a seguir? Canções, com muito gosto, com muito prazer. Estou ansiosa por compor outro disco.”