Maria do Mar, uma jovem realizadora, chega a uma casa do norte, para filmar um documentário. Mas a sua câmara vai desvendar segredos daquela habitação. É “Mãos no Fogo”, adaptação muito livre de Henry James, que Margarida Gil levou a Berlim e agora estreia nas salas. A realizadora esteve à conversa com o JN.
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Por coincidência, acaba de estrear outra adaptação aos nossos dias de um livro de Henry James, “A Fera na Selva”.
O Henry James é o escritor mais cinematográfico que conheço. Ele não diz tudo, só insinua. Há nele sempre um exercício de imaginação, que nós fazemos, ou devíamos fazer, com o cinema. E isso faz com que o público ou o leitor trabalhem.
O que a interessou mais no Henry James?
Quase todos os seus livros, sobretudo os melhores, são muito inquietantes, metem medo. E o que as pessoas mais gostam é que lhes metam medo. Neste livro que adaptei, muito livremente, interessou-me a realidade que ele trabalha, partir dali.
Antes de ir para Berlim, disse-nos que a critica portuguesa era “feroz e intolerante” para com o cinema português. O que espera agora que o filme vai estrear?
Espero que as feras estejam mais amansadas. Não percebo bem porque se comportam assim. Eu ando sempre em contraciclo, também é verdade. Mas não me parece que seja bem o caso deste filme. A reação que tenho tido das pessoas tem sido particularmente tocante. Nunca vi um filme meu a coincidir tanto com as emoções das pessoas que o veem. Não digo com o gosto, isso não me interessa muito, mas com as emoções.
Nestas últimas semanas têm chegado às salas muitos filmes portugueses.
A situação é muito frágil. As salas aguentam pouco tempo, porque não há espetadores, e os filmes é que se ressentem. Vão à vida muito cedo. Se as salas me derem tempo a que o filme viva, que o público saiba que existe, tenho uma fezada que este filme vai pegar. Já tenho tanta experiência que não fico apreensiva.
Como é que foi a reação em Berlim?
Foi muito interessante, porque era gente que não me conhecia. Vi perfeitamente nas salas o interesse das pessoas. Eram salas enormes, cheias de gente. Foi uma experiência gratificante, que gostava que se repetisse. Apesar de termos má fama, de dizerem que os cineastas só fazem filmes para o umbigo, toda essa treta, gostava imenso que os vários públicos que existem em Portugal fossem ver o filme.
O seu filme é também uma homenagem ao próprio cinema…
Não é a questão central. Mas aquela rapariga, cheia de candura, de ingenuidade, tão crédula, procura no cinema investigar a verdade. No fundo, é o que eu continuo a procurar.
A Maria do Mar do filme é a Margarida Gil quando era jovem?
Não foi deliberado. Mas pode ser a Margarida Gil como qualquer outra jovem realizadora a começar, com uma câmara antiga na qual acredita piamente. Com o material pesado todo às costas. Esse esforço físico dela interessa-me muito. Respeito-o tanto como o esforço físico da cozinheira. É um esforço físico feito com toda a dedicação.
O que é que a câmara de filmar vê que o olho humano não vê?
Isso é que é interessante. O filme é que pode responder a isso. É mesmo essa a essência do cinema.
É o mesmo princípio do “Blow-Up”, do Antonioni, para a fotografia…
E o Erice. E todo o Hitchcock tem a ver com isso. Aquilo que se filma e aquilo que se vê não é propriamente a mesma coisa. Nunca é. É isso que é fascinante, É isso que faz com que o mistério ainda surta efeito na cabeça das pessoas.
Hoje a maior parte dos realizadores já não filma com câmaras como esta, já se fazem filmes com telemóveis…
É perigoso. Pode induzir a uma coisa para que a tecnologia nos empurra, que é uma facilidade que falsifica o olhar. E seduz muito o lado do efeito. Há que fugir disso. Não foi por acaso que a Maria do Mar andou com aquele material. Há uma espécie de procura da pureza. Prefiro que os filmes se enraízem na tradição do cinema e não na tradição da tecnologia. Mas também pode ter a ver com a idade.
O filme mostra bem o seu universo, muito ligado à terra, aos lugares, ao corpo…
Eu sou muito sensível ao universo lateral. Do interior, das pessoas que vivem longe. Gosto imenso disso. A realidade urbana interessa-me menos.
O norte deste filme foi um imperativo de produção?
Não, foi mais um imperativo meu. Era para ser no Douro, mas o Douro está demasiado rico. Está tão turistizado, tão arrumadinho, tão jardinado. Não me interessou. E não queria nada colar-me ao Oliveira. Às vezes há sombras de que é preciso fugir. Já tinha filmado nesta casa de Ponte de Lima há 40 anos. E quando voltei senti que a casa me falava. Tinha vida, podia ser uma personagem. Os meus filmes inclinam-se muito para as casas.