Mário Augusto aborda em novo livro a emigração portuguesa no arquipélago dos EUA. E diz: "Os portugueses faziam lá o que indianos e paquistaneses fazem hoje cá".
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"Não fossem a miséria e a fome a escorraçarem tantas famílias" e a emigração portuguesa para o Havai não teria sido um caso de estudo tão especial, ao ponto de o jornalista Mário Augusto ter-lhe dedicado a reportagem "Mandem saudades", transmitida pela SIC em 1997 e agora adaptada (e ampliada) ao formato de livro, num volume integrado na coleção "Retratos" da Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Entre 1878 e o início da Primeira Guerra Mundial, emigraram para as longínquas ilhas do Pacífico - então prosaicamente conhecidas por Canecas ou Sandwich - 27 mil portugueses.
Eram oriundos sobretudo da Madeira e dos Açores, dada a proximidade geográfica, mas não faltavam também famílias do Interior Norte e Alentejo. Em comum tinham o desejo de fazer fortuna, assim como o desconhecimento absoluto face ao que iriam encontrar.
"Só mesmo os desesperados iam. Quem tinha mais posses escolhia o Brasil ou os Estados Unidos", defende o autor, para quem a emigração para o Havai conjugou "o drama humano com a capacidade de resiliência", o que a tornou "um caso singular na diáspora nacional".
Morriam às dezenas
As privações começavam logo na viagem, uma autêntica jornada de martírio a bordo de insalubres embarcações que se prolongava por cinco meses e onde, por cada leva de emigrantes, morriam passageiros às dezenas, sobretudo crianças.
Chegados a terra, os trabalhadores eram encaminhados para gigantescas plantações de açúcar, onde trabalhavam de sol a sol e sob condições desumanas.
Não tão diferentes, afinal, aponta o jornalista, de idênticas situações a roçar a escravatura que encontramos hoje mesmo no território nacional, mas com outros protagonistas. "Mais de um século depois, a situação dos nossos emigrantes portugueses da época faz lembrar o que acontece com os paquistaneses ou indianos, entre outras nacionalidades, que trabalham hoje na agricultura intensiva no Alentejo e noutras regiões. Os portugueses faziam o que os paquistaneses fazem hoje", observa.
Apesar de viverem isolados, os emigrantes começaram a influenciar os usos e costumes do território onde se instalaram. Basta dizer que o instrumento tradicional do Havai, o uquelele, mais não é do que uma réplica do portuguesíssimo cavaquinho ou ainda que o pão doce nacional deu origem a uma afamada iguaria local, ainda hoje consumida em larga escala.
A fé católica e o associativismo foram outros dos elementos identificativos da comunidade lusitana, cuja inserção crescente na sociedade local fez com que muitos filhos e netos dos emigrantes de primeira geração ocupassem lugares de destaque na política e economia do Havai ao longo de todo o século XX.
Quando Mário Augusto fez a reportagem televisiva, calculava-se que 22% da população do Havai era descendente de portugueses. Vinte e cinco anos depois, o número caiu para metade. A descida acaba por ser vista com naturalidade pelo autor de "Mandem saudades", porque "as marcas tendem a esbater-se com o tempo". Ainda assim, a tradução do livro e a futura edição no território havaiano - cenários em estudo - poderia servir de "orgulho" para uma comunidade que, em século e meio de história, já mostrou a sua rara fibra.