Cantor e compositor dos EUA, Mark Eitzel, de 66 anos, volta a Portugal para três concertos, em Lisboa, Espinho e Braga, oito anos e dois ataques cardíacos depois da última vez.
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A canção é a “Firefly”, do disco "California" (1988), dos American Music Club, mas ali soa diferente. Desprega auditório acima, tremulam cordas, violinos, veem-se quase vaga-lumes, ecoa um trompete remontado, cai uma pinga de piano, e a voz dele, granulada, franzida, amadeirada, vai na parte em que ele canta “tu és a coisa mais bonita que eu conheço” e depois repete e depois pergunta “mas para onde é que tu foste?”, e a voz subiu demasiado de tom.
Ele abana a cabeça, mas continua, está sentado, tem uma guitarra, veste fato preto amarfanhado, e no fim, já o manto da orquestra esvaeceu, os oito músicos parados no palco a olhar para ele, os seus arcos a espreitar, e ele diz: “Wow, foi tão bonito. Wow. O único aqui a arruinar isto tudo sou eu” – e abana outra vez a cabeça de olhos a bambear no chão.
Mark Eitzel, o fundador da instituição rock American Music Club, está no primeiro ensaio no Auditório de Espinho, e os músicos que ainda o fitam – todos miúdos entre os 15 e os 17 anos, são oito, metade da Gulbenkian de Braga, metade da Academia de Espinho –, não sabem se ele está a falar a sério ou a gozar. Eitzel é simultaneamente cómico, carismático e autodepreciativo. Sensível, vulnerável, romântico, muito, muito tímido, parece quase perigoso para si próprio, mas é simplesmente excessivamente honesto.
E durante aquele ensaio espinhense desta terça-feira de manhã, há de repetir o mesmo gesto autodestrutivo umas quantas vezes mais: "Vocês são maravilhosos, eu sou um 'fuck up', tornei a descer quando devia era subir" - e os miúdos olham para ele com a mesma cara absimada.
Mark Eitzel & Octeto de Cordas é o programa especial que traz o cantor e compositor norte-americano para três datas exclusivas, num regresso inesperado a Portugal: esta quarta-feira na Culturgest, em Lisboa; sexta-feira no Auditório de Espinho; sábado no Theatro Circo, em Braga.
Andou daqui desaparecido há oito anos, desde o último disco a solo, o seu 20.º, “Hey Mr. Ferryman” (2017). Está vivo, tem agora 66 anos, traz o mesmo coração esfrangalhado, dois ataques cardíacos depois.
“O meu coração?”, pergunta Eitzel no intervalo do ensaio, a bebericar café, a contorcer-se nas mãos, “o coração continua aqui, não foi afetado nas suas possibilidades românticas, estou com o mesmo homem há 15 anos, casamo-nos há cinco anos”, responde o artista sem sorrir, uns olhos esmeraldinos, a revelar o que queria realmente dizer.
Disse: “Estamos numa nova era, é aterrorizante. Agora prendem pessoas na América só por dizerem o que pensam. Enquanto homem homossexual tenho muito medo. É terrível o novo clima destes idióticos machos dominantes. Às vezes faço de conta que sou republicano, é hilariante”. Mas logo depois completa, a abanar a cabeça encabulado, "não, não é”.
É intangível a grandeza indiscutível de Mark Eitzel, as suas músicas vivem pejadas de perdedores, personagens dispostas a desaparecer, a transitar de um estado translúcido para outro, desesperadas entre a existência e o nada sussurrado.
“É uma felicidade trazer cá de novo o Mark”, diz André Gomes, 41 anos, programador do Auditório de Espinho que o descobriu aos 20 anos, foi no disco “60 watt silver lining” (1996). “É um disco deslumbrante, não é? Queríamos muito tê-lo cá. E foi fácil convencê-lo a vir e tocar neste formato acústico, ele e um octeto de cordas”, diz o promotor embevecido, de olhos muito abertos no ensaio.
O espetáculo das três cidades terá 90 minutos de duração. Metade das canções serão novas (“Let’s fall from the sky” e “Enomi” são títulos que ressaltavam das folhas das partituras dos miúdos), as restantes são imortais há muito tempo, são de derreter ferros e o coração, “Firefly”, “Outside this bar”, “Mission rock resort”, “Western sky”, em todas elas Mark Eitzel canta o amor – o amor e os seus céus irreparáveis –, e a ameaça da última canção, aquela onde ele tornará a cantar "é tempo de eu partir, de ter um nome novo, de ter uma cara nova, não, eu já não pertenço a este lugar", para acabar depois a chorar.
Com a América na órbita alienada da fascista distopia, o artista já anda “à procura de sítios novos para viver”. E desfia que “a Inglaterra é um bom sítio, Portugal é um bom sítio, Portugal é um ótimo sítio, mas depois”, e aqui ele faz franzidas reticências de olhos verdes, “mas depois aqui não é a minha casa”.
Estamos condenados? “Isso é o que eles querem que nós pensemos! Não acho nada. Não estamos. Eu tenho esperança”, diz Mark Eitzel naquela sua cara de cão molhado, o coração inchado, a confiança quase a rebentar.