Mati Diop venceu o Urso de Ouro de Berlim com “Dahomey”, nos cinemas a partir de quinta-feira.
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Francesa de origem senegalesa, sobrinha do grande realizador africano Djibril Diop Mambéty, Mati Diop já estivera em Cannes com o filme anterior, “Atlantique”. Agora, vence o Urso de Ouro com “Dahomey”, documentário criativo sobre a chegada ao Benim de 26 peças de arte devolvidas pelo estado francês, pertencentes ao antigo Reino do Dahomey. Ainda em Berlim, estivemos a conversar com a realizadora.
O seu filme coincide com uma larga discussão sobre este tema da devolução de obras de arte retiradas pelos países colonizadores.
É um ponto de encontro entre diversas temporalidades. O presidente francês ter decidido devolver estas peças de arte é uma coisa, eu ter querido fazer este filme é outra. Quando tinha vinte anos, a viver em França como afro-descendente, soube pelos media de uma importante devolução à África do Sul, mas esse acontecimento foi quase escondido. Porque revelaria a violência da História, que a França não queria expor.
Hoje a situação é completamente diferente.
Ainda é o caso hoje, mas graças a uma nova geração, à luta dos universitários e a outros ativistas, a questão pós-colonial em França tem vindo a ser revelada. O governo obviamente que tenta descredibilizá-los, mas apesar da negação que a França tenta manter, já não está a funcionar
Onde é que entra o seu empenhamento pessoal?
Eu também tenho evoluído na minha relação com a França e África, tendo sido obviamente esmagada pela cultura ocidental dominante. Mas também me fui libertando desta influência, de forma a deixar respirar a minha africanidade, para que exista no meu próprio corpo. Há uma evolução pessoal e política, no interior de uma situação política. Foi isso que me deu o desejo de fazer este filme.
Quando é que percebeu que nesta história da devolução havia um filma a fazer?
Eu já estava assombrada pela ideia de um novo filme, depois de “Atlantique. Depois foi apanhada de surpresa pelo anúncio da devolução dos artefactos, foi muito inesperado. Estava muito pessimista em relação à possibilidade de acontecer mesmo. Mas aconteceu. Era uma grande oportunidade para abrir um campo de questões.
Porque decidiu que seria mais interessante o formato de documentário?
A primeira coisa que pensei foi que a devolução devia ser documentada em filme. O cinema deveria ver este momento histórico do mundo presente. Também para haver um arquivo da história africana. De início quis fazer isto para o Benim, para que ficassem com um registo desta mudança histórica. A restituição também é uma prova física dos factos ocorridos.
Nos seus dois últimos filmes a espiritualidade tem uma grande importância. Como define a sua própria espiritualidade?
Eu sou uma mistura de várias coisas. Desde que comecei a ter consciência das coisas que me coloco questões existenciais. E tenho a oportunidade de navegar entre tantas influências distintas. Há questões identitárias que ainda não resolvi. Somos nós que temos de escolher o que somos. Eu vivo entre dois mundos e isso é muito percetível nos meus filmes.
Qual é a parte africana nas suas influências artísticas?
Em primeiro lugar, podemos escolher se herdamos ou não algo. E quando escolhemos herdar algo, temos de nos reinvestir e dar-lhe um sentido. Um dos projetos da colonização é fazer com que nos detestemos a nós próprios, que desconsideremos a nossa própria cultura, desaprovar a nossa própria história e a nossa própria existência. Leva séculos a reconstruir a história de que fomos despojados.
Como é que a Mati Diop está nesse processo?
Mesmo que as independências tenham sido uma realidade, como é oficial, pôs na cabeça das pessoas a ideia de que a colonização acabou. Se somos soberanos, não temos de trabalhar na psicologia, que foi também colonizada, a nível pessoal e coletivo. É por isso que falo de restituição, que também existe a este nível. Uma reconquista da minha africanidade faz parte do processo de restituição. São processos similares.
Um dos momentos mais interessantes do filme é a discussão entre os jovens, parece que todos têm as suas razões…
Houve dois debates, em dias diferentes. No total houve seis horas de debate. Queria que o espetador sentisse que é apenas uma só voz, mas com diferentes timbres, pontos de vista. Como uma entidade coletiva inteligente. Colocando as questões segundo ângulos diferentes. Não tem nada a ver com ter ou não razão, mas sim abrir a porta a uma questão, que por sua vez abre outra porta. E um olhar sobre o futuro, com um olhar mais claro.
Percebe-se que aqueles jovens estão a lutar contra a forma como a História lhes foi contada.
Da mesma forma que me foi contada enquanto criança francesa. Sentia que alguma coisa estava errada, na forma como os professores falavam da escravatura e da colonização. Não eram mais de duas páginas nos livros de História. Quando saí do liceu tive a felicidade de ir logo para o cinema e ao começar a ler mais coisas começa-se a descobrir as chaves. Eu carrego um trauma colonial muito pesado, e de ambos os lados. O filme, mesmo feito segundo uma perspetiva africana, também carrega as marcas dos meus traumas.
A Mati Diop decidiu dar voz aos artefactos, mas na sua própria língua.
É uma das grandes questões em debate. No filme, percebe-se que muitos dos jovens nem seriam capazes de colocar aquelas questões na sua língua africana. Alguns falam bem, mas outros nem por isso. Na universidade, todos os cursos são em francês. O facto dos debates serem em francês faz parte da questão e é um problema. Por isso é que eu tinha a certeza que as vozes dos artefactos tinham de ser na sua própria língua, o fon.
Mas de onde veio esse lado quase fantástico, de dar voz aos artefactos?
É assim que vejo aqueles artefactos. Considero-os como entidades vivas. Não vou dizer que as ouço falar comigo. Mas quase. Quando olhos para eles, não os reduzo a objetos. Faz parte da minha cultura africana. E da minha sensibilidade. Como realizadora, como é que poderia transmitir isto? De início, achava que o silêncio delas, a sua presença majestosa, era o mais eloquente. A ideia de lhes dar voz veio no processo de montagem.
Do total de 26 objetos restituídos, decidiu concentrar-se em alguns em particular. Como é que os escolheu?
Não fui eu que os escolhi, talvez tenham sido eles que me escolheram a mim para fazer o filme. Tive muita sorte em ter podido filmar a primeira restituição e escolhi peças com que as pessoas se pudessem identificar. Foi uma oportunidade única que tive para as humanizar.
