Novo álbum expõe dupla perspetiva sobre os tempos recentes: há ensimesmamento e abertura de portas.
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Não será um disco "cortado ao meio" no sentido que Italo Calvino deu ao seu famoso Visconde, mas é um trabalho assumidamente dual, composto por "fases distintas no tempo e na forma" e que lança uma dupla perspetiva sobre a experiência da pandemia. "Noite e dia" é Miguel Ângelo a derrapar na incerteza e a erguer a cabeça para um verão do futuro. É também um músico maduro a mostrar que a sua curiosidade e sentido de risco continuam intactas.
Tudo começou por esse verdadeiro "corte ao meio" na história recente do planeta: a covid-19 despejou um "balde de água fria" sobre a carreira de "Nova (pop)", o álbum lançado no final de 2019 cuja digressão foi atropelada pelos confinamentos. Metido em casa, o cantor percebeu: "Quando isto acabar ninguém vai querer saber do "Nova (pop)". Mais vale pensar em algo que se adeque às circunstâncias". A primeira frase de "A noite cega o dia" lança o ambiente e a temática para o lado noturno do novo disco: "Fiquem à espera que à volta do mundo as pessoas comecem a perder literalmente o juízo". E a paisagem sonora, com as suas batidas tensas a lembrar Metro Area, transporta-nos para o interior da cabeça de alguém que rumina sobre o desconcerto da situação. "Tentei fazer uma banda sonora para o isolamento, uma coisa fechada, hermética, mais próxima da instalação, algo que refletisse essa sensação de não saber o que esperar do futuro", explicou Miguel Ângelo ao JN.
A linha musical explorada na "noite" tinha já ascendência em "Naqueles dias", uma das faixas de "Nova (pop)", e noutras experiências anteriores, e é um caminho que entusiasma o cantor: "Gostava de desenvolver este som em novos capítulos e acho que irá incorporar-se na música que faço".
Peça fundamental para a "visão noturna" foi Rui Maia, teclista dos X-Wife e responsável por projetos como Mirror People, que fizera já algumas remisturas com temas do antigo Delfim e produz agora o lado "noite". "Sempre gostei do trabalho dele e dos resultados. Trabalhámos cada um em sua casa mas houve grande proximidade. Somos ambos melómanos, ficávamos horas a trocar cromos como dois nerds."
Miguel Ângelo também aproveitou o primeiro confinamento para recuperar a velha ansiedade com os discos encomendados, dedicando-se às coisas "mais escuras" de Frank Sinatra e Scott Walker.
o lado luminoso
Dá-se então o "intervalo" da pandemia, no verão de 2020, e surge a Miguel o pensamento de que "isto há de passar". O lado luminoso do disco é um "desejo de regressar aos palcos" e as canções retomam a faceta mais pop e solarenga a que associamos o cantor. O otimismo retorna, a sua banda volta aos ensaios presenciais. É composto "Déjà vu", o primeiro single do álbum, cujo vídeo mostra Miguel Ângelo a introduzir-se nos vestuários e ambientes de momentos icónicos da pop, como o último concerto de The Beatles no terraço dos escritórios da Apple, em Londres, ou as imagens de clips famosos de Bob Dylan, David Bowie, Duran Duran e Mão Morta.
Miguel Ângelo pensa agora em como levar "esta dualidade para a estrada", dividindo-se entre a expectativa sobre os futuros espetáculos e a antecipação de dificuldades criadas pela pandemia, como a "falta de roadies, técnicos e até de carrinhas para alugar às bandas".