Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro: "Tínhamos vontade de voltar a estar com pessoas"
Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro falam de "Diários de Otsoga", já nas salas.
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Entre agosto e setembro de 2020, durante seis semanas, os realizadores Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro fecharam-se, com uma equipa de 15 pessoas, entre técnicos e atores, numa quinta perto de Sintra, testados e com rodagem aprovada, filmando o seu quotidiano. O resultado, "Diários de Otsoga", aparece-nos contado do fim para o princípio. Depois da Quinzena dos Realizadores de Cannes e da estreia em França, chegou esta semana às nossas salas.
Depois de ver o filme a ideia parece simples. Mas quem a teve em primeiro lugar?
Miguel Gomes - Foi uma ideia de produção, não uma ideia de filme. Um modelo de produção para filmar numa época em que estava tudo parado, ou havia muito pouca atividade. Tínhamos acabado de sair do primeiro confinamento. E houve esta ideia de que era preciso fazer qualquer coisa juntos. Nós tínhamos vontade de voltar a estar com pessoas.
O filme, sem aquela casa, não seria possível. Como é que a encontraram?
A casa era caótica e isso podia servir ao filme
Maureen Fazendeiro - A primeira coisa que pedimos aos produtores, não tínhamos argumento nem nada, foi uma casa que pudesse ser, ao mesmo tempo, o alojamento da equipa e o décor do filme. Apesar de sermos uma pequena equipa, ainda éramos uns 15, o que implicava muitos quartos. A casa, perto de Sintra, é de um tio de uma das produtoras.
MG - Era quase um estúdio. Aquela família depositava ali roupa que já não usava, a casa funcionava como um armazém. Achámos isso tudo muito interessante. Tinha dois telescópios. Era uma coisa caótica e achámos que isso podia servir ao filme.
Quando entraram na casa já tinham o filme na cabeça, nomeadamente a estrutura?
MF - Na primeira semana ficámos nós com a argumentista, a Mariana Ricardo, para desenhar a estrutura, já com algumas ideias de cenas e de situações. E na segunda semana os atores entraram e trabalhámos em improvisações com eles. A estrutura era muito simples e permeável ao que acontecia na casa a cada dia.
MG - O filme tem este movimento, com o tempo invertido, e vai mostrando aquilo que o cinema normalmente esconde. Abre-se em direção à sua génese e está mais próxima da vida. A equipa apanhou uma bebedeira no primeiro dia. No segundo dia, a cozinheira está sozinha a fazer uma caldeirada e a atriz, ressacada, acorda antes dos outros, ajuda a cortar batatas, corta mal as batatas, corta para bacalhau com natas e não para caldeirada. Isso são coisas que estão mais próximas da vida.
O filme é visivelmente do Miguel, pela estrutura, mas também tem o lado cósmico dos filmes da Maureen.
MF - O Miguel também tem esse lado cósmico. Mas o filme é nosso. Tem coisas de ambos, embora eu relacione muito este filme ao momento em que foi feito, mais do que ao universo dos nossos filmes.
MG - Eu percebo a questão. Mas é muito difícil dizer o que vem de mim e o que vem da Maureen. Por vezes nem nos lembramos de quem teve esta ou aquela ideia. Muito daquilo veio também da equipa que estava a escrever o filme quase sem se dar conta.
A montagem de todo o material foi mais complexa do que num filme de ficção?
Quase tudo o que filmámos acabou por entrar
MF - Foi muito mais simples e muito mais rápida. O filme na realidade foi montado na rodagem. Durou cerca de um mês a montar. Também não tínhamos muito material. Tínhamos filmado em película e quase tudo o que filmámos acabou por entrar.
MG - A Maureen até ficou um bocado chocada com uma montagem tão curta. Ainda por cima havia o stress da bebé [de Maureen e Miguel] que ia nascer. Pensávamos que iríamos interromper a montagem para ela nascer. Mas de repente o filme estava montado.
Quais foram os ecos de Cannes e da estreia em França?
MG - Em Cannes correu otimamente. Depois na estreia levámos com o Macron a anunciar que na ida às salas passa a ser obrigatório o passe sanitário. A exibição caiu logo 70%. Havia cinemas a decidir se fechavam ou não. Foi uma aposta arriscada do distribuidor francês.
MF - Mas nas sessões em que estivemos em Paris e Marselha houve espectadores a vir falar connosco, a agradecer pelo filme. Foi bem recebido, mas numa escala mais pequena.
MG - As pessoas também reagem de acordo com aquilo que foi a experiência que tiveram durante o confinamento. Há muita gente que fica muito satisfeita com o filme, que nos agradece por voltarmos a mostrar que a vida é bonita. Mas também há quem diga que o filme tem um lado sombrio. Será que o filme é um espelho da forma como as pessoas viveram este tempo? Não temos resposta para isso.
A seguir
Brasil adiado, uma viagem pela Ásia e o imaginário do Alentejo
Miguel Gomes falou-nos dos projetos que tem no Brasil e na Ásia. "O "Selvajaria" é sobre uma guerra civil no final do século XIX. No contexto atual da pandemia, em especial no Brasil, é completamente impossível fazer um filme assim. Estamos a renegociar com os financiadores para um momento posterior em que as coisas sejam de novo possíveis. Entretanto imaginei um outro filme, chamado "Grand tour". Começámos por fazer uma viagem pela Ásia. Os personagens desse filme, um está a fugir do outro, e atravessam vários países asiáticos. Decidimos o percurso e fizemos o trajeto. E filmámos uma espécie de arquivo de viagem. Depois voltámos para Lisboa e escrevemos o argumento a partir daquelas imagens. A ideia agora é filmar a história do filme, as cenas com atores, em estúdio." Maureen Fazendeiro vai começar a filmar já em setembro, no Alentejo. "É um filme de arqueologia, ao mesmo tempo documentário e ficção, sobre o imaginário da região. A rodagem vai durar um ano e meio, segue as estações do ano. Retrata pessoas e histórias do Alentejo e inventa com elas outras histórias. É um filme sobre o tempo, também."