Após a antestreia em Bordéus, o acontecimento chega ao Porto: estreia hoje "Para que os ventos se levantem: uma Oresteia".
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"Para que os ventos se levantem: uma Oresteia", em cena no Teatro S. João, no Porto, a partir de hoje e até 6 de novembro, é uma aventura teatral que interroga os alicerces do ideário democrático. Nesta entrevista ao JN, o encenador Nuno Cardoso, de 51 anos, responde maioritariamente com perguntas - e as suas perguntas são o carburador do Mundo.
"Oresteia" trata da passagem da justiça do "olho por olho" para a justiça de tribunal, ou da barbárie para a civilização. O que foi mais relevante explorar na trilogia de Ésquilo?
A ideia de voltar a Ésquilo, e sobretudo à Oresteia, prendeu-se principalmente ao caráter fundador que o texto transporta. A Oresteia é o texto que postula a ideia da sociedade de direito, onde há garantias e critérios para que a vida em comunidade se constitua justa, escape ao aleatório, à lei de talião, ao costume e ao mais forte. Num momento em que a sociedade se exponenciou com a globalização, sofreu a provação da covid-19 e conhece de novo a guerra na Europa, em que estado se encontra o Estado de Direito? Como é possível no seio de sociedades protegidas pelo direito haver uma descrença tão grande nesse próprio sistema? Porquê a radicalização do discurso que leva ao crescimento da extrema-direita e da cultura do cancelamento? Que fenómeno levou à erosão da ideia de verdade? É o ponto de partida para o retorno à Oresteia após a experiência de a fazer na prisão de Paços de Ferreira, em 2001.
A reescrita de Gurshad Shaheman convoca questões atuais. Pareceu-lhe certeiro o exercício?
Na reescrita do Gurshad, a fábula e o espaço são os mesmos, a ação é na Grécia, vista simbolicamente como a Europa. O que a reescrita empresta é um olhar não europeu ao texto e à vivência de um autor refugiado, ativista ecológico, LGBT. Como vê o outro, a minoria, um texto matricial da sociedade? Foi esse o ponto de partida de Gurshad. Como dar voz às vítimas, às mulheres, aos jovens? Como será a face da justiça para quem está fora do enquadramento por ela pensado? Em que medida a contemporaneidade das redes sociais, da desinformação dinamitam o texto? Onde podemos nele achar vigor para continuar?
As reescritas reavivam o interesse pelos clássicos, ou é na autonomia que conseguem face ao hipotexto que se encontra o seu real valor?
Não lhe sei responder. Idealmente, uma reescrita deverá cumprir ambos os papéis. Um texto clássico sobrevive porque é sempre um texto importante para o nosso presente, não é arqueologia. A reescrita abre novos horizontes, permite-se um questionamento mais à pele da nossa própria conjuntura.
Encenou em conjunto com a Catherine Marnas. É importante a sintonia nestes processos de coautoria, ou é a divergência que enriquece o trabalho?
O próprio processo de trabalho é talvez o Manifesto que subjaz ao projeto. A encenação conjunta e a reescrita, a diversidade de toda a equipa pressupõe necessariamente divergências, pluralidade de pontos de vista. Ora, para que o processo criativo chegue a bom porto, a discussão a todos os níveis, a compreensão e a sintonia são fundamentais. Portanto, o consenso. É um exercício de democracia e de diálogo, ao arrepio do que muitas vezes vemos nas páginas de jornal.
O modo intercalado como o espetáculo foi feito, com residências no Porto e Bordéus desde junho de 2021, permitiu-vos chegar ao espetáculo desejado?
O espetáculo desejado é uma quimera. O espetáculo só existe no confronto com o público. Em Bordéus, esse confronto foi gratificante, esperemos que o público do Porto também o ache útil para a sua vida.
Além de "Oresteia", há outro projeto de cooperação, com o Teatro Nacional da Catalunha, que mantém em cena o seu "Ensaio sobre a cegueira". Como vê o processo de internacionalização do São João desde que assumiu a direção do Teatro?
Não me cabe avaliar o que faço. Cabe só dizer que é um processo que resulta da responsabilidade, do esforço e da excelência de toda a equipa que constitui o São João.
Continuará a ser um eixo central do seu mandato essa internacionalização?
A internacionalização não é o eixo central. A nossa atividade centra-se na ideia de teatro nacional como serviço público nas suas valências. Um teatro nacional do Porto em todo o país e lá fora também. Um teatro nacional com um centro educativo, aberto à comunidade e às parcerias. Isto tem consequências quer a nível da nossa atividade na cidade, quer a nível da nossa atividade no país, onde vamos criando várias parcerias quer com a nossa circulação quer com a colaboração que temos com os criadores portugueses, quer com a nossa atividade internacional. O facto de termos uma relação com Cabo Verde, com Moçambique, com as redes internacionais de teatro, a nossa presença em outros palcos lá fora são resultado do interesse que uma visão de teatro de serviço público pode suscitar em parceiros internacionais que se reveem no esforço, repito, de todos os que fazem o Teatro Nacional São João.