Meio século depois há uma nova recolha da fascinante poesia de Luiza Neto Jorge, com a chancela da Assírio e Alvim.
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Regressar à poesia de Luiza Neto Jorge (1939-1989) é adentrar em território vagamente familiar. Mas, por mais que reconheçamos certas palavras e até versos inteiros, há uma espécie de inapreensibilidade própria de uma poética que, absorvendo influências diversas e até opostas, faz da sua singularidade a característica maior.
Apesar de ter feito parte do grupo de vanguarda Poesia 61, ao lado de autores como Fiama Hasse Pais Brandão ou Gastão Cruz, a autora de “Quarta dimensão” sempre foi mais uma solitária do que uma coletivista, focada na construção de um corpo poético tão rigoroso como “uma forma de ciência”, assinala Fernando Cabral Martins no prefácio desta edição da Assírio & Alvim, que tem a particularidade de surgir exatamente meio século após a primeira reunião da sua poesia, num volume intitulado “Os sítios sitiados”.
Tantos anos depois, a forte visualidade destes poemas continua a impressionar os leitores, cujos sentidos são continuamente postos à prova através de imagens tão poderosas que aludem quase em permanência a “verbos andantes como mulheres a andar”, “olhos de lâmpada” ou “frutos frios por fora” que “são por dentro aquecidos a eletricidade”.
Poetisa de significados que explorava o sentido das palavras para lá do senso comum, Luiza Neto Jorge inculcava em cada escrito uma esfera de ação inalienável. Em vez das abstrações genéricas, encontramos o concreto e a precisão, como se ao poeta nada mais restasse que não fosse mover-se no real e influenciá-lo com as suas ações, mesmo que situadas fora desse tempo. “Um corpo rodou / no calcanhar: suave ronda / ao procurar / a mais eterna / ação de estar”, escreve num dos poemas mais breves do livro.
A imaginação ronda de perto estes poemas, capazes de conjugarem “o esforço da invenção de uma nova língua no interior da língua” com a tentativa de se libertarem do jugo do quotidiano.
“Num lugar muito perto do coração das palavras”, a poetisa e tradutora vê-se, assim, investida, através do ato da escrita, no papel de uma examinadora livre de um certo real, em que os condicionamentos, leis e regras são um cenário distante, quando não impossível. Afinal, “sempre viver incluiu andar percorrer voar / de avião ou com os braços ou num ser de mais / rodas que nos conduzam / a outro sentido ambulatório”.
"Poesia"
Luiza Neto Jorge
Assírio & Alvim