Peça de teatro estreia esta sexta-feira em Braga e inspira-se na fuga ao Estado Novo para originar análise sobre exploração atual de migrantes. JN ouviu o autor e encenador Tiago Correia.
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A forma que Tiago Correia escolheu para mostrar “O Salto” é propositadamente dura, como foi dura a realidade de um regime que forçou tantos a querer sair do Portugal orgulhosamente só, oprimido e amordaçado. Durante a hora e meia da sua peça teatral, não há maquilhagem para suavizar a História, nem para a tornar menos complexa.
Pelo contrário: acentua-se a tensão, os conflitos interiores, as dúvidas e os medos de quem colocou a vida nas mãos de outros em busca de um destino melhor. Assim, esta é uma viagem de duplo sentido entre o passado e o presente.
“Todos os que procuravam fugir de Portugal estavam a lutar pela sobrevivência. Aconteceu naquele tempo com os portugueses e acontece agora com povos de outros países”, diz ao JN Tiago Correia, responsável por escrever e encenar “O Salto”, a criação da companhia A Turma que chegou aos palcos em setembro e que esta sexta-feira à noite se mostra pela primeira vez no Theatro Circo, em Braga, às 21.30 horas.
O tema ainda é tabu
O texto resulta de um projeto de investigação sobre a emigração portuguesa no Estado Novo, centrado nos anos 1960 e 1970. Inspirando-se em testemunhos reais, o autor retrata o drama de forma realista, mesmo que este seja um trabalho de ficção e não uma obra documental.
Tiago Correia assume a intenção de levar para o palco temas que “continuam a ser tabu”: a fuga da guerra, da opressão e da fome em direção a um futuro indefinido, mas que se acredita ser melhor. “Uma das coisas que percebi é que as pessoas não têm problemas em falar sobre as motivações para emigrar, mas fala-se pouco da travessia em si e da miséria que por vezes se encontra do outro lado”, diz o autor.
Lutar pela vida
Para contar a história, Tiago Correia encheu um carro com cinco personagens: um jovem endividado e perseguido que se apresenta como “passador”, uma rapariga da aldeia que foge à miséria, uma criança por ela protegida, um desertor da Guerra do Ultramar e uma revolucionária.
“São personagens muito diferentes, mas com um objetivo comum: procurar vida melhor, procurar liberdade”, resume a atriz Teresa Mello Sampayo, que contracena com Francisca Sobrinho, Francisco Pereira de Almeida, Zé Ribeiro, Sofia Vilariço e André Júlio Teixeira.
A iminência do pior
A viagem rumo à fronteira leva a uma tortuosa perseguição policial, que acaba num acidente de carro que deixa os ocupantes feridos e obrigados a lutar para sobreviver.
“A partir dali há escolhas difíceis que têm que fazer, porque a iminência do pior está sempre presente”, sublinha Teresa Mello Sampayo. E isso era o que podia acontecer a todos os que entravam naqueles carros fatais. v
Em 2025 há nova peça
“O Salto” é a primeira parte de um díptico centrado no drama da emigração que terá seguimento em 2025 – uma nova peça está a ser escrita por Tiago Correia para retratar o Portugal “multicultural” de hoje, um país que agora é recetor de migrantes.
“É preciso recordar o que aconteceu connosco para questionar a forma como acolhemos os outros. Embora funcione de forma autónoma, esta nova peça terá ligações a “O Salto”, nomeadamente através de uma personagem em comum”, desvenda ao JN Tiago Correia.
Com a ação centrada no sul do país, onde muitos migrantes são colocados a trabalhar “sem quaisquer condições” na agricultura intensiva, a ideia fundamental do autor e encenador é abordar a problemática das “redes da migração atual”.
O assunto é tentacular: “Há uma máfia organizada que se alimenta disso, desse tráfico humano, dessa escravatura moderna que deixa as pessoas reféns. Isso deve ser, no mínimo, motivo de reflexão”, acusa Tiago Correia.