Numa das maiores feiras de artes e antiguidades do mundo, o quadro "Descida da cruz", de 1827, estará exposto até dia 14 de março.
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Depois de muita polémica relacionada com a sua saída do país, e apesar da intenção expressa do Governo português em tentar recuperá-lo, o quadro "Descida da cruz", uma obra essencial de Domingos Sequeira, vai estar exposto para venda na Feira de Arte e Antiguidades da European Fine Art Foundation (TEFAF), em Maastricht, nos Países Baixos. O certame, um dos maiores do setor no mundo, começa este sábado, com pré-abertura quinta e sexta-feira. A pintura já estará em exposição, uma situação que pode dificultar um cenário de possível regresso a Portugal.
A notícia foi avançada pelo “Expresso” e corroborada pelo galerista Mário Roque, da Galeria de São Roque, à agência Lusa. A Galeria de São Roque é um dos espaços portugueses presentes na TEFAF deste ano, e este responsável confirmou a presença da emblemática pintura nacional, datada de 1827, logo na entrada do expositor da galeria madrilena Colnaghi. Segundo refere a Colnaghi no seu site, o seu stand na TEFAF 2024 inclui “o que há de melhor em Antiguidades e Antigos Mestres, juntamente com uma seleção de obras do século XX”.
O espaço destaca “ofertas tão diversas” como “Il Trionfo di Flora” de Mario Nuzzi e Raffaello Vanni (Roma, c. 1660), a Composição Cubista de María Blanchard (1881-1932) (1917-1918) e um “magnífico torso romano de uma divindade masculina, considerado Apolo e final da República ou início do Império”. A obra de Domingos Sequeira não está, por enquanto, expressamente referenciada nesta plataforma nem nas redes sociais da galeria. O JN tentou contactar por diversos meios a Colnaghi para obter mais informações, mas ainda não obteve resposta.
Recuperação mais longe
Foi esta a galeria espanhola que terá comprado a obra do autor português no final do ano passado, ao descendente do duque de Palmela Alexandre de Souza e Holstein. A notícia foi primeiro avançada a 26 de janeiro, pelo “Expresso”, que revelou que o quadro, uma obra marcante de um dos mais importantes pintores portugueses do século XIX, estaria à venda com um valor atribuído de 1,2 milhões de euros. Segundo adianta agora o semanário, a presença numa feira como a TEFAF poderá elevar o valor negocial da obra.
Refere ainda que, quer a presença numa feira frequentada por alguns dos maiores institutos e colecionadores de arte do mundo, como a eventual subida do valor negocial, tornam mais difícil uma eventual recuperação do quadro por parte do Estado.
Recorde-se que a saída do país foi possível devido a um conjunto de circunstâncias que incluiu uma “falha” da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) assumida pelo Governo, tendo, no entanto, a tutela logo garantido que ia procurar soluções para trazer a pintura de novo para Portugal.
Na prática, a saída foi possível após uma autorização da agora extinta DGPC, emitida apesar de o diretor do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), Joaquim Caetano, ter dado um parecer negativo, defendendo mesmo a necessidade de se iniciar um “processo de classificação da pintura como Bem de Interesse Nacional, impedindo a sua saída de território português”.
Esta classificação não avançou e o quadro foi mesmo exportado, motivando uma carta aberta ao Governo por parte de 12 historiadores de arte, museólogos e arqueólogos nacionais, que exprimiram logo a sua “indignação” por esta ocorrência “gravemente lesiva do património português”. Também a secção portuguesa do Conselho Internacional de Museus (ICOM-Portugal) manifestou indignação com o processo.
Ainda em fevereiro, a secretária de Estado da Cultura, Isabel Cordeiro, garantiu ter colocado em curso “todos os esforços” para conhecer as “eventuais condições de compra” da obra, adiantando que o assunto tinha sido entregue à Museus e Monumentos de Portugal, esperando “desenvolvimentos para muito breve”. Da nova Museus e Monumentos de Portugal, criada a 1 de janeiro de 2024 e dirigida pelo ex-presidente do Teatro Nacional de São João, Pedro Sobrado, o JN obteve na altura a confirmação direta de que esta entidade recebeu “mandato da tutela para desenvolver o processo de contacto com os proprietários das obras de Domingos Sequeira”, não adiantando, porém, dados sobre as negociações.
Sem informação nova a partilhar
Agora, depois da notícia de o quadro estar na feira dos Países Baixos exposto para o mercado internacional, o JN contactou novamente esta entidade, que referiu terça-feira que, “sobre o processo negocial em torno das obras de Domingos Sequeira, não existe informação nova a partilhar”.
Também o Ministério da Cultura não avançou mais detalhes sobre o que terá acontecido ou poderá ainda suceder: ao JN, fonte oficial do ministro referiu que “não existe nenhuma novidade para partilhar” e remeteu para as últimas declarações do ministro Pedro Adão e Silva sobre o tema, no passado dia 20 de fevereiro, em Évora.
Na altura, o governante afirmou que a “especulação” criada em torno do tema não era “certamente, interessante para ninguém, desde logo para os próprios proprietários do quadro". Admitindo que a aquisição de obras de artes pelo Estado são procedimentos que "demoram tempo até se encontrarem soluções", o responsável dizia que se deve "direcionar este processo para onde deve estar”. "É no âmbito da comissão para aquisição de bens culturais e é no presidente da comissão, que é também o presidente da Museus e Monumentos de Portugal, que desenvolverá contactos com os proprietários", disse então.
Museu de Arte Antiga quer os quatro quadros
“Descida da cruz” faz parte da série emblemática de quatro pinturas que Domingos Sequeira executou nos últimos anos de vida, em Roma, onde morreu em 1837.
Com criação estimada em 1827, a composição a óleo, de cariz religioso, representa o local do calvário de Cristo após a retirada do corpo da cruz. A série conta ainda com “Ascensão”, “Juízo final” e “Adoração dos magos” – este último é o único já na posse do Museu Nacional de Arte Antiga, comprado por 600 mil euros numa inédita campanha pública de crowdfunding lançada em 2016.
O quarteto do percursor do movimento romântico na arte portuguesa “tem um valor excecional”, explicou em fevereiro ao JN o historiador Vítor Serrão, “e o Estado tem todo o interesse em reunir as quatro obras”.
Além da “Adoração dos magos”, o MNAA tem na sua posse os desenhos preparatórios das obras e pretende deter as quatro pinturas para as exibir numa possível sala a dedicar a Sequeira. Tudo indica que o Governo gostaria de adquirir não só o quadro exportado, mas também os dois restantes.
A TEFAF, feira de arte antiga, moderna e contemporânea, pintura, escultura, desenhos e iluminuras, fotografia, manuscritos, livros, antiguidades, joalharia e design recebe em média cerca de 80 mil visitantes por ano e acontece em Maastricht até 14 de março.