Bryan Adams foi o ídolo adorado do primeiro dia do Marés Vivas. Houve quem tenha feito 500 quilómetros só para o ver (pela terceira vez). Antes, James e Miguel Araújo arrancaram o público do chão.
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Foi em apoteose, com paixão, vivacidade e nostalgia, que o público do MEO Marés Vivas recebeu anteontem o mais português dos heróis canadianos, no primeiro dia do festival, que termina hoje no antigo Parque de Campismo da Madalena, em Gaia. Aos 62 anos, Bryan Adams faz o que nem sempre é fácil: une a geração que o acompanhou até ao auge da popularidade, nos anos 80 e 90, à que o ouviu pela primeira vez nos discos dos pais. E é versátil, porque é rock star, é pop star e é compositor das mais icónicas baladas das últimas décadas. O público português adora-o e talvez por isso continue a dar tanto de si quando vem cá (este ano, já é o terceiro concerto em terras lusas). Ou então o contrário: continua a dar tanto e por isso é tão amado.
"Olá Portugal. O meu nome é Bryan. Sou o vosso cantor esta noite", disse o músico, numa das muitas vezes em que, num português quase perfeito, se dirigiu aos milhares que o aplaudiam - não tivesse ele passado parte da infância em Cascais, por conta das funções diplomáticas do pai. Em quase duas horas de concerto, a voz sempre vigorosa comentada com pasmo entre o público intercalou clássicos como "Please forgive me", de 1993, com temas recentes como "Shine a Light", de 2019; e acompanhou guitarradas como "It's Only Love", single roqueiro do álbum "Reckless", com canções de dar a mão, como "(Everything I Do) I Do It for You".
Ao contrário do vozeirão, que continua inabalável, a imagem parece beliscar-lhe a segurança e justificar o zelo: os repórteres que estavam a fotografar o concerto só puderam captá-lo durante a primeira música, a partir da régie, e as fotos estiveram sujeitas a validação posterior. A fazer pandã com o cabelo lambido e o casaco de cabedal, Bryan Adams passou por uma onda mais rockabilly, ao estilo Elvis, com a dançável "You Belong to Me", e fez as delícias da malta mais jovem com "Here I Am", da mítica banda-sonora do filme de animação "Spirit". Mas, sem surpresas, foi com "Summer of 69" e, a fechar, "All for Love" que deixou o público arrepiado. No final, depois de uma chuva de aplausos (e antes de outra chuva de aplausos), gritou beijinhooooos. Assim mesmo.
Corpo irrequieto com James
James em Portugal é só mais uma sexta-feira normal. A banda britânica de indie rock e britpop, formada no início da década de 80 em Manchester, já cá esteve mais de 40 vezes, a última em abril, no Campo Pequeno e no Super Bock Arena. Depois de terem estado no Marés em 2014, os ingleses regressaram e mostraram que são como o "port wine": também ficam melhores com a idade.
Antes de Bryan Adams e depois de The K"s e Maximo Park, Tim Booth mostrou que não perdeu genica: o corpo esguio a bambolear, a anca irrequieta, os braços endiabrados no ar e, desta vez com a recém-chegada colega de banda Debbie Knox-Hewson em "How Was It", o habitual "crowd surfing", como que a nadar bruços sobre os fãs. Depois de abrir com "Sound" (1992), a banda seguiu com dois temas lançados no ano passado, "Isabella" e "All the Colours of You", esta última "uma mensagem contra o fascismo", avisou Booth, de megafone em riste. Em "Sit Down", a multidão vibrou aos saltos, por muito que a letra pedisse para sentar, e continuou nessa frequência de energia (nunca chegando aos calcanhares do próprio Booth) até ao fim, com "Come Home" a prometer mais um regresso a esta segunda casa.
Miguel Araújo faz vivas todas as marés
O homem que dedilha as cordas da viola com a concentração do gestor que tragicamente teria sido se não tivesse vencido a timidez disse antes do concerto que não sabia ao certo quantas vezes tinha atuado no Marés, mas - viria a verificar-se depois - foi recebido como aparição rara. Talvez porque, poderá até nem ser, mas Miguel Araújo parece mesmo o pai fixe, o amigo porreiro, o primo engraçado que tem sempre piada pronta e, por tudo isso, certamente melhor que os maridos das outras. E quem o viu ali descontraído, de cabelo de verão a combinar com a camisa e guitarra elétrica a tiracolo, suspeitou disso. No "Dia da Procissão", do recém-nascido álbum "Chá Lá Lá", que inaugurou o concerto de uma hora, o músico de 44 anos disse à Rosa para arredondar a saia e eis que milhares de homens e mulheres passaram a chamar-se Rosa. Em crescendo até ao fim, o público, cedo conquistado, ganhou pica com "O Pica do 7" e depois cantou a "Recantiga" e a "Dona Laura" como se tivesse ele próprio composto os temas. Mas foi com "Talvez Se Eu Dançasse", a fechar, que se formou o habitual êxtase na audiência e entre o clã bem-disposto que acompanha Miguel Araújo no palco.
Centenas de quilómetros para verem os ídolos
Numa altura em que o país bate recordes de temperatura e terrivelmente arde, encontrámos no novo e alargado recinto do festival, a 20 minutos a pé do mar, uma bolha de frescura revigorante. Quase como uma daquelas bolas de neve do Natal que levantam um manto branco quando agitadas, só que com eucaliptos em vez de pinheiros e céu marítimo na cúpula de vidro. Foi uma mudança drástica para duas mães e duas filhas que vieram juntas de Viana do Alentejo, onde os termómetros têm passado os 40 graus. Ana gosta de calor, por isso sentiu frio; para a mãe, Maria, "soube bem". Mas numa coisa concordam, a mesma que as fez percorrer 500 quilómetros até Gaia: a adoração por Bryan Adams. É a terceira vez que Maria o vê. "A segunda este ano! Ele gosta muito de Portugal e transmite isso nos concertos", completa a amiga Cláudia, que passou o bichinho à filha Carlota, exemplo dos tantos jovens entre as duas centenas de fãs de idades e latitudes várias que, pelas 16 horas, entravam no recinto do festival para ver os ídolos Bryan Adams e James.
Sandra e a filha adolescente disputam entre si o título de maior fã do canadiano. "Não, mãe, quem gosta mais sou eu. É uma emoção total, estou num nervosismo...", assume Bárbara, que veio com mais duas amigas. As quatro gaienses foram as primeiras a passar pela barreira de segurança, mas nem por isso correram para o palco. "Não me interessa vê-lo. Posso ver no YouTube. Quero é ouvi-lo e dançar, pode ser lá atrás", diz, do alto dos seus 16 anos, já despertos para o que interessa.
Samba com cerveja à mesa
Uma das grandes novidades deste novo Marés Vivas, além de mais espaço e mais árvores, foi a Roda de Samba da Orquestra Bamba Social, grupo formado no Porto com músicos brasileiros e portugueses, protagonistas da atmosfera mais boa onda do festival, ideal para abrir o apetite para Miguel Araújo e descomprimir, à noitinha, de James e Bryan Adams. A atuação deles não é bem uma atuação: é mais um almoço que deu para tarde e em que cada um dos amigos à volta da mesa, bem regada a cerveja, começa a tocar um instrumento diferente. Batida atrás de batida e, de repente, estamos no cimo de um morro paulista ou carioca com o samba no pé.