Filme de Chantal Akerman considerado o melhor de todos os tempos.
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Desde 1952 que a revista britânica Sight & Sound organiza inquéritos sobre os "melhores filmes de sempre". Publicada mensalmente desde 1932 e distribuída pelo British Film Institute, é uma das revistas mais antigas de cinema ainda em circulação.
O enorme prestígio no meio da publicação fez com que estes inquéritos, levados a cabo a cada dez anos, fossem levados a sério pela comunidade cinéfila. É habitual que, a cada novo inquérito, cinéfilos de todo o mundo façam contas a quantos filmes viram dos classificados nos 100 mais, procurando a partir daí, por todos os meios, colmatar através dessas listas as suas principais lacunas na cultura cinematográfica.
É verdade que é impossível determinar com rigor científico qual o "melhor filme de sempre", da mesma forma que não de pode dizer deste ou daquele livro, pintura, tema musical ou qualquer outra forma de expressão artística que é o melhor de todos os tempos. Mas não deixa de ser um exercício interessante, sobretudo para tomarmos o pulso ao gosto dominante ao longo dos tempos.
Nos primeiros inquéritos efetuados pela Sight & Sound o primeiro classificado, foi sistematicamente Citizen Kane/O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles, que ficaria assim, durante décadas seguidas, com o cânone de "melhor filme de todos os tempos".
O filme de Welles, sua primeira longa-metragem, estreada quando o realizador tinha apenas 25 anos, surgia quando o próprio cinema, considerado a Sétima arte, não tinha atingido ainda meio século de existência e o sonoro surgira havia pouco mais de dez anos.
Para além das curiosidades cronológicas, o filme marcava uma charneira na história do cinema, com a sua estrutura narrativa original e a sua estética que, apesar de claramente influenciada por escolas anteriores, abria novas portas em domínios como a utilização dos cenários, da luz, das lentes, da própria música.
Em inquéritos mais recentes da Sight & Sound, o filme de Welles foi destronado como o "melhor de sempre" por Vertigo/A Mulher Que Viveu Duas Vezes (1958), uma das muitas obras-primas de Alfred Hitchcock - é só escolher -, no que pode ser visto como uma alteração do critério de muitos inquiridores, de o "melhor" para "o que mais se gosta".
Tal deriva do prazer enorme com que de desfruta da cascata de emoções e do hiper romantismo do filme do mestre do suspense, numa obra que, além desses elementos, tem também uma estrutura narrativa que faz apelo - como o fazia o filme de Welles - à participação ativa do espetador, algo que infelizmente nos nossos dias muitos produtores de cinema pouco arriscam em fazer.
Ora, 2022 não poderia existir sem mais um inquérito da Sight & Sound, o oitavo, sendo que desta vez se alargou ainda mais o número de inquiridos. Foram assim nada menos que 1639 os participantes de todo o mundo, entre críticos de cinema, programadores, curadores, arquivistas e académicos, a quem era pedida uma lista de dez títulos.
Os resultados, recentemente divulgados, são completamente surpreendentes, sobretudo naquele que, pelos menos nos próximos dez anos, será considerado o "melhor filme de sempre": Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975). A realizadora belga Chantal Akerman cometeu a verdadeira proeza de colocar nos lugares subsequentes os filmes de Hitchcock e Welles.
O filme, curiosamente, nunca teve distribuição comercial em Portugal, tendo sido exibido no entanto em várias mostras dedicadas à realizadora. Essa ausência do circuito comercial pode dever-se ao facto de, nesses anos pós-revolução, as pessoas se interessarem mais por filmes de ~indole diretamente político. Ou então, à linguagem austera do filme, que não deixa, no entanto, de ter uma mensagem claramente poítica.
Na realidade, a segunda longa-metragem da belga, assumidamente defensora de causas feministas, é uma desmontagem do papel tradicional da mulher, ao se centrar na personagem cuja morada dá o nome ao filme, magnificamente interpretada por Delphine Seyrig, uma viúva que durante as tardes, quando o filho está na escola, se ocupa maquinalmente das lides domésticas e recebe clientes no seu quarto, como forma de poder pagar as suas faturas.
Uma tentativa de explicação para a subida deste filme ao estatuto de "melhor de sempre" terá sempre um pouco de injusta e mesmo de inconveniente, já que não se pode julgar o gosto de outros. Mas, diluída em mais de milhar e meio de personalidades, não pode deixar de se pensar que o resultado é fruto dos tempos em que vivemos, em que o politicamente correto "obriga" a colocar conceitos de equidade, de género, religiosa ou racial, acima de critérios eminentemente qualitativos.
A lista dos 100 mais
Aliás, se olharmos para a lista dos 100 mais, obtida pelo número de vezes que cada filme foi citado pelas personalidades envolvidas no inquérito, verifica-se com alguma estranheza, por exemplo, que o sobrevalorizadíssimo Portrait de la Jeune Fille en Feu/Retrato de uma Rapariga em Chamas (2019), nem sequer o melhor filme de Céline Sciamma, se encontra em 30º lugar na lista dos melhores filmes de sempre!
Da mesma forma, outros filmes mais recentes, ainda por validar como clássicos do cinema, se alguma vez o forem, aparecem já perto do fim da lista de cem, mas no meio de autênticos monumentos da arte cinematográfica: Moonlight (2016), de Barry Jenkins e Get Out/Foge (2017), de Jordan Peele.
O paradigma mudou. O cinema clássico já não tem a influência que tinha antes. Vemos isso no que o cinema contemporâneo nos propõe. Muitos jovens, que não têm necessariamente no conhecimento dos clássicos a sua principal prioridade, terão votado neste inquérito. Os resultados são o que são e devem ser respeitados, mas não pode dixar de ser motivo de reflexão a ausência nos 100 mais de filmes de David Wark Griffith, considerado o "pai do cinema", e que assinou obras únicas, de presença constante em inquéritos anteriores, como The Birth of a Nation/O Nascimento de uma Nação (1915), Intolerance/Intolerância (1916) ou Broken Blossoms/O Lírio Quebrado (1919).
Por curiosidade, aqui ficam os dez mais da História do Cinema, para a Sight & Sound, em relação a alguns dos quais muito mais se poderia ainda refletir:
1 - Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (Chantal Akerman, 1975)
2 - Vertigo/A Mulher Que Viveu Duas Vezes (Alfred Hitchcock, 1958)
3 - Citizen Kane/O Mundo a Seus Pés (Orson Welles, 1941)
4 - Tokyo Monogatari/Viagem a Tóquio (Yasujiro Ozu, 1953)
5 - In the Mood for Love/Disponível para Amar (Wong Kar-wai, 2000)
6 - 2001: A Space Odyssey/2001: Odisseis no Espaço (Stanley Kubrick, 1968)
7 - Beau Travail (Claire Denis, 1999)
8 - Mullholand Dr. (David Lynch, 2001)
9 - Chelovek s Kino-Apparatom/O Homem da Câmara de Filmar (Dziga Vertov, 1929)
10 - Singin' in the Rain/Serenata à Chuva (Gene Gelly e Stanley Donen, 1951)
Ora, o que o autor destas linhas não pode esconder é que, enquanto crítico de cinema do Jornal de Notícias, também fora convidado para este novo inquérito da Sight & Sound. No entanto, a sua "responsabilidade" no resultado final é apenas de 1/1639 avos do total. Fica aqui a lista que fora enviada à revista, no verão passado, sem qualquer ordem em especial:
2001 - A Space Odyssey/2001: Odisseia no Espaço (Stanley Kubrick, 1968)
Persona/A Máscara (Ingmar Bergman, 1966)
La Règle du Jeu/A Regra do Jogo (Jean Renoir, 1939)
Tokyo Monogatari/Viagem a Tóquio (Yasujiro Ozu, 1951)
Citizen Kane/O Mundo a Seus Pés (Orson Welles, 1941)
Johnny Guitar (Nicholas Ray, 1954)
The General/Pamplinas Maquinista (Buster Keaton, 1926)
The Big Sleep/À Beira do Abismo (Howard Hawks, 1946)
The Searchers/A Desaparecida (John Ford, 1956)
North By Northwest/Intriga Internacional (Alfred Hitchcock, 1959)
Influenciado por estes inquéritos, o autor destas linhas, então jovem cinéfilo, na companhia de um colega destas andanças cuja vida profissional o levou para outras vias, Manuel Proença de Carvalho, encetou um projeto semelhante. Tratou-se, na altura, de solicitar a 50 personalidades do mundo do cinema português, críticos e realizadores sobretudo, uma lista com os 50 melhores filmes e 25 melhores cineastas de sempre. Os dois autores do inquérito juntaram as suas listas, perfazendo um total de 52 inquiridos
Num mundo, para os mais jovens completamente inimaginável, sem internet, emails, computadores ou mesmo faxes, demorou algum tempo a coligir estas listas, obtidas por telefone, carta (é verdade), idas a casa ou jantares, como um memorável com Manoel de Oliveira. Além do mestre, muitos outros dos que participaram nesta aventura de dois jovens nos deixaram entretanto, como Arthur Duarte, António Lopes Ribeiro, António de Macedo, Paulo Rocha, Manuel Cintra Ferreira, Pedro Bandeira Freure ou Lauro António, bem como só três primeiros diretores da Cinemateca, Manuel Félix Ribeiro, Luís de Pina e João Bénard da Costa.
O resultado seria publicado em livro em 1982, há precisamente 40 anos, sob o título de "Melhores Filmes, Melhores Cineastas". Aqui ficam os filmes classificados nos dez primeiros lugares:
Citizen Kane/O Mundo a Seus Pés (Orson Welles, 1941)
La Règle du Jeu/A Regra do Jogo (Jean Renoir, 1939)
Bronenosetz Potiomkine/O Couraçado Potemkine (Sergei Eisenstein, 1925)
M/Matou (Fritz Lang, 1931)
Ivan Grozny/Ivan, o Terrível (Sergei Eisenstein, 1945)
Singin" in the Rain/Serenata à Chuva (Gene Kelly e Stanley Donen, 1951)
Johnny Guitar (Nicholas Ray, 1954)
Ugetsu Monogatari/Os Contos da Lua Vaga (Kenji Mizoguchi, 1953)
2001: A Space Odyssey/2001: Odisseia no Espaço (Stanley Kubrick, 1968)
Sunrise/Aurira (Friedrich Wilhelm Murnau, 1927.
E agora, dos cineastas:
Charles Chaplin
Jean Renoir
Orson Welles
Sergei Eisenstein
Fritz Lang
David Wark Griffith
John Ford
Alfred Hitchcock
Friedrich Wilhelm Murnau
Jean-Luc Godard
Um balanço do ano que hoje termina
Estando o ano a acabar, a ocasião propicia-se para o balanço de 2022 no que diz respeito às estreias de cinema em Portugal. Aqui fica, opinião o mais subjetiva e pessoal, a lista dos 10 melhores filmes estreados no nosso país, por ordem alfabética neste caso do título português.
Drive My Car, de Ryusuke Hamaguchi
Os Fabelmans, de Steven Spielberg
A Lei de Teerão, de Seed Roustaee
Lobo e Cão, de Cláudia Varejão
Mato Seco em Chamas, de Adirley Queirós e Joana Pimenta
Memória, de Apichatpong Weerasethakul
Óculos Escuros, de Dario Argento
Um Pedaço de Céu, de Michael Koch
Top Gun: Maverick, de Joseph Kosinski
Vórtex, de Gaspar Noé