Casa cheia, na sexta-feira, no Theatro Circo, em Braga, para ouvir, ou talvez seja mais adequado dizer "sentir", KMRU (Joseph Kamaru). As bilheteiras esgotadas são, de resto, uma constante do festival Semibreve, um sucesso internacional que vai na sua 12ª edição, embora tenha nascido para ser um evento pontual.
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O som de KMRU remete-nos imediatamente para o conceito forjado por R. Murray Shafer de "soundscape". O som dos dias é a matéria primária das longas trilhas, envoltas numa melancolia inquietante do artista queniano.
Pessoas à conversa, num mercado, eventualmente, imagina-se que é um lugar com muita gente, o canto de um pássaro, pode ser de um jardim em Berlim - onde atualmente frequenta o mestrado de Estudos Sónicos e Artes Sónicas, na Universitat der Kunste Berlin -, ou dos arredores da sua Nairobi natal. Os "snapshots" sonoros captados pelo seu "Zoom" são depois colados e vertidos em drones expansivos que os dissolvem numa névoa nostálgica.
Quem esteve na plateia principal do Semibreve, esta sexta-feira, sentiu, muito provavelmente, melancolia, desolação, pesar, por que não dizer, saudade. Todavia, KMRU pontua o seu som com qualquer coisa que interrompe a fluidez e que resgata quem ouve no instante imediatamente antes do aborrecimento, apenas para começar tudo de novo. É incomodo, mas viciante, qualquer coisa do tipo: "faz-me mal que eu gosto".
A dualidade da natureza humana
Se um navio há muito tempo afundado no fundo escuro do oceano emitisse sinais sonoros poderia perfeitamente ser este "Cylene" de François J. & Stephen O"Malley. O álbum colaborativo da dupla composta pelo líder dos Sunn O))), Stephen O"Malley e o François J. Bonnet, atual diretor do INA GRM (Groupe de Recherches Musicales) oscila entre as descargas da guitarra de O"Malley e a discreta manipulação, reorientando o som, de Bonnet.
Ao longo do concerto do duo, o público é lançado numa vertigem, a lembrar a novela gótica de Robert Louis Stevenson, "O Estranho caso do Dr. Jeckyl and Mr. Hyde" (ou o filme de Steve Lawson para outros). Os sons de terror cavernoso da guitarra de O"Malley são domesticados e urdidos num tecido sedoso por Bonnet. Não é oferecida uma solução para esta dualidade, da mesma forma que não há uma resposta definitiva para a questão da dupla natureza do ser humano.
Quem foi ao Semibreve, mesmo que fique na plateia do Theatro Circo, não pôde deixar de subir ao primeiro andar para contemplar o trabalho vencedor do "Edigma Semibreve Award". Um prémio instituído para celebrar e promover a criação de trabalhos que explorem a interatividade, o som e a imagem suportados através da utilização de tecnologias digitais.
Arte de protesto
O projeto vencedor, "COORDINATED", do estúdio Animaspace (Angelina Kozhevnikova), Arina Kapitanova, é uma instalação multimédia com uma componente de performance. A proposta passa por uma forma descentralizada de protesto, comunicando locais através de agentes voadores autónomos (drones que literalmente voam no Theatro Circo). A ideia é fingir que se trata apenas de uma atividade lúdica, contudo os drones transmitem a localização das manifestações através de mensagens codificadas que podem ser lidas com recurso à realidade aumentada. O contexto é a Rússia de Putin e a forte repressão por parte das autoridades, especialmente depois da invasão da Ucrânia.
O Semibreve prolongou-se no sábado com workshops, talks e concertos, mas a maioria dos retardatários esbarraram no "sold out" para a maioria dos eventos, deste festival que vende 40% dos ingressos a estrangeiros (muitos espanhóis e britânicos) e em que a uma grande parte dos bilhetes são vendidos, mesmo antes de se conhecer o cartaz definitivo.