“Via Norte”, o novo filme de Paulo Carneiro, já está nas salas de cinema. O "Jornal de Notícias" conversou com o realizador.
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Depois de em “Bostofrio” filmar a aldeia transmontana do pai, Paulo Carneiro pegou no carro e foi pela Europa fora à procura de emigrantes portugueses com a paixão dos automóveis. O novo filme do realizador, “Via Norte”, já estreara na Suiça, no importante festival de documentários Visions du Réel, passou no Indie Lisboa e chega agora às salas de todo o país. Estivemos a conversar com o realizador.
Num certo sentido, “Via Norte” é o espelho de “Bostofrio”. O filme anterior era sobre os que ficaram, este sobre os que partiram.
É uma boa perspetiva. Há a ideia de um conjunto de três ou quatro filmes, com outros que estão na calha. Há um mesmo conceito entre todos, buscam uma forma cinematográfica muito igual, na ideia dos planos fixos, da coreografia dentro do plano. Foi no Bostofrio, a aldeia de onde o meu pai vem, que nasce a ideia do “Via Norte”. Os que criticam os que vemos em “Via Norte” são os que estão em Bostofrio. Mas depois são diferentes na forma como se desenrolam. Este é urbano, é um filme de noite.
De onde veio a ideia de partir dos automóveis?
Desde criança, em Bostofrio ou na aldeia da minha mãe, na Beira Baixa, via sempre os emigrantes que regressavam com grandes carros. Os que ficaram, os que não tiveram coragem de ir, criticavam o exibicionismo dos que foram, e que também serve para provar qualquer coisa. E ficava fascinado por aqueles modelos, alguns dos quais nem havia ainda em Portugal. E outros modificados.
Os carros dos emigrantes sempre foram uma forma de afirmação.
Eles não podiam transportar a casa deles, como o caracol, transportavam os carros deles. Para mostrar que tinham chegado a algum lado. É uma forma de legitimação de estar longe da família, de estar num outro país, de ter de se adaptar a uma nova cultura.
Como é que encontrou todas estas máquinas e os seus donos?
Fui para Norte, para a Suiça, embora também tenhamos um pouco de França. O cinema também serve para inventar geografias. Em dez dias, desde que cheguei à Suiça, tive de encontrar aquelas pessoas todas. Foi muita busca na rua, nas redes sociais, via carros e deixava um papel com o meu contacto. E depois houve o passa palavra. Foi assim que fui construindo esta rede de pessoas que acabam por entrar no filme.
Salvo uma rara exceção, é um universo masculino o que mostra.
No filme, sim. Há muitas mulheres com gosto pelos carros. Mas tem a ver com o facto de eu ser homem, com a minha aproximação. Era fácil encontrar mulheres com o gosto dos carros, mas havia sempre dúvidas sobre se eu teria outras intenções. Em tão pouco tempo não consegui quebrar essa barreira. O carro também é uma coisa meio sexual.
Qual a sua relação pessoal com os carros?
Eu gosto de carros. O Celica é mesmo o meu carro. Está na garagem, agora ando em duas rodas, é muito mais fácil. O meu gosto pelos carros vem desse imaginário infantil na aldeia. Os meus pais são de origem humilde e migraram do interior para o centro de Lisboa e depois para os subúrbios, na Pontinha. O trabalho via-se no carro, juntavam dinheiro para comprar um carro. Foi uma coisa que ficou comigo. Na minha família sempre houve essa coisa dos carros, e as oficinas são nos subúrbios.
O filme desmonta alguns mitos da emigração, a vida boa, o sucesso…
Porque é que o filme é todo de noite? Não é pelas imagens dos néons serem muito bonitas. Filmei à noite porque é quando eles tinham um bocadinho de tempo. Talvez não se entenda, mas quis mostrar o trabalho dessa forma. Alguém diz no filme que o dinheiro não nasce nas árvores. A vida deles é dura.
Há um emigrante que fala mesmo de racismo para com os portugueses, na Suíça.
Eu estive na Suíça sete ou oito meses. É uma sociedade completamente diferente. Têm uma cultura da delação. Em vez de chamarem uma pessoa para tirar um carro da frente vão logo chamar a polícia. Não se pode tomar banho depois das dez da noite. Há uma ideia de classe ainda muito forte. Os emigrantes não são os encarregados da obra nem os engenheiros. São os trabalhadores. E têm uma certa sobranceria para com as pessoas que não puderam estudar tanto. Não sei se é racismo, mas sente-se uma distância.
Ficamos a conhecer-nos melhor ao ver este filme?
Gostava que ficássemos a refletir sobre estes portugueses. O filme tenta criar uma empatia com eles, estamos com eles e entendemos as razões pelas quais eles gostam de carros. O carro também é um elemento de integração. Todos nós queremos fazer parte de um grupo. Acho que é um filme que faz as pazes com quem em tempos criticou estas pessoas. Pretende ser uma elegia da emigração. Fala de carros mas é sobre outras coisas.
Que reações é que tem tido ao filme?
Há dois grupos. Os que acham que o filme é uma caricatura, são de uma classe superior e acham que aquelas pessoas que estão ali com aqueles carros são uns parolos. E há os mais humildes, que se identificam. Não entendo como as pessoas com mais formação têm vergonha das que eu filmei.