Artistas expõem na cidade com o que os olhos veem e a alma sente. É uma prática ilegal, mas concordam que os fins justificam os meios.
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Novata, nervosa, Helena Janeiro (nome artístico: Coração Ditador), decidiu levar um amigo numa das primeiras vezes que fez colagens na rua. Foi um final de tarde, na Rua Mompilher, no Porto. O amigo vigiava a eventual chegada de polícias de forma a que a artista, que nasceu no Algarve, cresceu no Alentejo e se tornou adulta no Porto há 30 anos, pudesse fugir antes de ser multada.
Colava uma aplicação de dentes (dezenas) a saltar de uma boca. De repente, lembrou-se: "Então, tudo calmo?". Sim, estava, disse o amigo, tirando aquele "executivo" que a mirava há 20 minutos. Com o coração acelerado, espreitou por cima do ombro e viu o presidente da Câmara a admirar o seu trabalho. "Ficámos os dois sem palavras, olhámos um para o outro calados. Decidi continuar", recorda. Quando terminou, nem polícias nem Rui Moreira. "E o trabalho ainda lá esteve algum tempo", diz.
Coração Ditador, Três Pontinhos, Preencher Vazios, Bastardo são quatro de dezenas de assinaturas de artistas que, descontentes, expressam-no nas ruas, com arte carregada de sentido social e político. "Atacam" normalmente de noite e fazem desenhos, stencil, colagens de papel ou azulejos e estão todos nas paredes do Porto de forma a arrancarem uma reação de quem passa: revolta, um sorriso ou gargalhada, um pensamento. É ilegal e eles sabem, mas nem isso os desmotiva. Uns cobrem-se com uma capa invisível, não querem ser (re)conhecidos, outros ganham dinheiro com a sua arte que nasce, normalmente, na Faculdade de Belas Artes do Porto e cresce na rua.
Todos estão descontentes com a gentrificação, estampam-na nas paredes, outros querem chamar a atenção para a política da cidade, do país, do património. Helena Rocio Janeiro acredita que aquele "encontro" com Rui Moreira poderá até ter aberto portas para iniciativas públicas para as quais passou a ser convidada.
Preenche espacos
Aventura nasceu na rua
Joana de Abreu escolheu como nome de rua "preenche espaços". Natural de Valongo, foi quando tentava arranjar um tema para final do mestrado em Arte e Design para o Espaço, nas suas viagens entre a estação de São Bento e a Faculdade de Belas Artes, que reparou na degradação do património de azulejos dos edifícios, abandonados ou não.
Decidiu reconstruí-los, com pedaços de madeira e substituir os que faltavam e com um poema de escritores portugueses. Gostou do resultado e decidiu continuar. "Quando terminei o mestrado, senti um clique", conta Joana, 29 anos. "São intervenções espontâneas", completa. Sempre que se depara com um novo projeto, vai ao local, mede, faz recolha fotográfica e substitui os azulejos ou painéis em falta, com o mesmo padrão, mas cores diferentes.
Três pontinhos
O portuense de Albergaria
Luís...... (três pontinhos), que também é Carvalho, tem 42 anos e anda há dez na rua. Motivação? "Talvez seja porque a rua é a galeria que aceita tudo, desde vandalismo à arte." Luís...está à frente da Galeria Geraldes há 18 anos, uma herança de família que tem atravessado momentos complicados, muito devido à pandemia.
Nascido em Albergaria-a-Velha e formado em Marketing, diz que o Porto é a sua casa e que expressa a sua preocupação com arte protestativa bonita. Vindo de uma área tão distante da pintura ou cerâmica, afirma que o que sabe aprendeu com outros artistas. Começou com azulejos.
A maior causa que o leva a intervir é chamar a atenção para a gentrificação e uma das obras que mais visibilidade lhe deu foi uma pintura pop art de Rui Moreira nu (tal como a capa de um disco de José Cid) com o prémio de melhor cidade turística a apontar para Gaia. Esteve 15 dias na Praça dos Poveiros até ser limpo.
Bastardo
Admirado pela coragem
Até no meio artístico alguns não sabem quem ele é. Cidadão normal durante o dia, artista ativista sob a escuridão da noite. Não quer ser conhecido nem sequer que se saiba o seu verdadeiro nome. Assina Bastardo. "Não tenho intenção de ser reconhecido", diz. Começa por contar que a sua arte evoluiu de algo mais poético para uma crítica mais agressiva. De tal forma, dizem alguns dos outros artistas do mesmo meio, que é admirado pela coragem das suas caricaturas e crítica agressiva. Uma das mais poderosas deverá ser o talibã a carregar um míssil "Made in USA".
É formado em Cinema e desde novo aprendeu a amar a leitura e a escrita, algo que continua a fazer. Os seus primeiros desenhos falavam para a sua poesia e o inverso.
Há três anos, decidiu passar para a rua e uma das suas primeiras intervenções nasceu do convite do luso-francês Stra. Decidiu pendurar molduras junto à Faculdade de Belas Artes e convidou artistas a colocarem lá trabalhos, incluindo os seus. Foi o grande passo.
Os tempos mudaram e os trabalhos tornaram-se mais complexos e usa-os agora para contestar "de uma forma política mais aguçada, ou filosófica, que no fundo também está carregada de caráter político". Bastardo reconhece que as suas intervenções são ilegais e já teve problemas com a Polícia, como quando escreveu sob uma imagem de Rui Moreira "Já era". Pintou-o duas vezes e, de ambas, o grito político foi limpo da noite para o dia.
Brigada antigrafiti limpa murais todos os dias
De acordo com a Câmara do Porto, há projetos artísticos que são preservados quando licenciados ou pedidos diretamente pela Autarquia. Diz que não há tolerância para pinturas não autorizadas e a brigada antigrafíti trabalha todos os dias por toda a cidade, podendo acontecer demorar a passar nos mesmos sítios que já tinham sido limpos. Alguns artistas acreditam que as brigadas são "benevolentes" perante a grandeza e beleza de certos trabalhos, mas a mesma fonte afirma que não corresponde à verdade.
Curiosidades
Cristina amo-te
Um cartaz de um anónimo anda a aborrecer Luís. O "Cristina amo-te" enerva-o porque considera que o espaço dessa amada está a ser invadido. Por isso, inventou um outro que costuma colocar ao lado do primeiro com "Também te amo Tina".
Coração Ditador
À primeira experiência em colagens, Helena Rocio Janeiro chamou-lhe Coração Ditador, que passou também a identificar o seu blogue. Na altura em que passou para a rua, não mais se dissociou do título. Só em exposições é que assina com o próprio nome.