Public Enemy regressam para fazer o retrato de uma América na encruzilhada do vírus, racismo e eleições.
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Para um ano excessivo como 2020, em que o escapismo se poderá confundir com cobardia ou ingenuidade, talvez a melhor banda sonora passe por uma abordagem de choque, tanto na sonoridade como nas letras, tanto no desejo de incorporar a tensão vivida como na vontade de enfrentar o incompreensível. Esse trabalho costuma ser feito pelos novos, com a pele mais próxima da atualidade, mas o ano é tão complexo que pede experiência, maturidade, uma ronha antiga.
E por isso vem dos anos 1980 a sabedoria capaz de fazer um disco refletir o ar deste tempo. Chega com uma pergunta o 15.º álbum de originais dos Public Enemy: "What you gonna do when the grid goes down?"(Que vais tu fazer quando a rede vai abaixo?).
Pegar em livro e caneta
A resposta vem no tema de abertura, "Grid", que conta com a participação dos Cypress Hill e de George Clinton: "O pessoal talvez tenha de pegar num livro, pegar numa caneta". É um dos múltiplos enfoques deste trabalho que resgata a colaboração da banda formada em Nova Iorque, em 1985, com a histórica editora Def Jam (a última parceria remonta ao disco de 1994 "Muse sick-n-hour mess age"): em "Grid" denunciam o modo como as "fake news" e a propaganda transformaram a Internet numa espécie de faroeste digital.
Mas se o ano é excessivo em todo o Mundo, à conta da pandemia da covid-19, nos EUA é triplamente imoderado: às mais de 200 mil vítimas do vírus, juntam-se as mortes de George Floyd e Breonna Taylor, que reacenderam com estrépito as tensões raciais no país, e ainda a eleição presidencial de 3 de novembro. "Vote this joke out, or die trying", clama Chuck D em "State of the union (shut the fuck up)". Nunca nomeado, Donald Trump é o "state bozo" [palhaço estatal] que os Public Enemy associam ao "culto nazi da Gestapo", sendo alvejado em diversos temas.
Já as questões raciais, tema dominante na banda que colheu os favores da crítica do rock e do hip hop nos anos 1980/1990 e que logrou inscrever o seu nome no Rock and Roll Hall of Fame em 2013, mereceram a reescrita do hino de combate "Fight the power", cuja versão original foi criada para a banda sonora do filme "Não dês bronca", de Spike Lee (1989), e posteriormente integrou o álbum-manifesto "Fear of a black planet" (1990).
Para esta operação, onde cabem agora os nomes de Floyd e Taylor, foi convocada uma plêiade de comparsas: Nas, Rapsody, Black Thought, Jahi, YG e Questlove. Também o tema "Public enemy number won" refaz um clássico do grupo, desta feita com a ajuda dos Run-DMC e de Mike D e a Ad-Rock , dos Beastie Boys.
No final de um disco povoado por batidas marciais, linhas inflamadas de guitarra e um funk obscuro e trepidante, sobra ainda espaço para o intimismo em "Rest in beats" e "R.I.P Blackhat", homenagens da banda a rappers falecidos e uma espécie de réquiem por um tempo excessivo, sem soluções à vista.