Filmes de Kamy Lara e Rui Simões venceram os principais prémios do festival.
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Durante nove dias, Luanda viveu a quarta edição do Doc Luanda, o festival de cinema documental organizado por Jorge António e Henrique Santos. Além das competições nacionais e internacionais, compostas por uma dezena de títulos, o festival organizou uma série de debates, em torno de temas como o futuro do documentário, transmitido em direto pela estação de rádio oficial do evento, ou o papel da mulher no cinema africano, com a presença das realizadoras Irene A’Mosi, de Angola, Latifa Saïd, da Argélia e França, e Inês Oliveira, de Portugal.
Foram também organizados workshops, sobre escrita de argumento, coordenado por Virgílio Almeida, autor das histórias de vários filmes com forte ligação a Angola, como a animação "Nayola", de José Miguel Ribeiro e “A Ilha dos Cães”, de Jorge António, ou sobre a questão dos direitos de autor, no cinema e no audiovisual. A celebração dos 50 anos da independência de Angola deu origem a uma exposição no Instituto Camões, importante parceiro do festival, e a uma palestra sobre as independências dos países de expressão portuguesa por parte da investigadora portuguesa Maria do Carmo Piçarra.
Em todos estes eventos, como nos organizados pela Allianca Française de Luanda, aproveitando a presença na cidade de Latifa Saïd, notou-se um enorme entusiasmo por parte do público, da comunidade cinematográfica angolana e sobretudo por parte de uma jovem geração ávida de conhecimentos, de contacto com o mundo do cinema e desejosa de poder contar as suas próprias histórias. Não só as plateias e os locais onde as sessões de cinema e os eventos paralelos se encontravam quase sempre cheios, como a participação da audiência foi sempre entusiasta, positiva e tremendamente lúcida.
Um dos momentos altos do Doc Luanda, realizado numa cidade imensa, com os seus graves problemas de desigualdade social mas sempre com uma enorme vitalidade, foi a entrega do Troféu Sarah Maldoror ao veterano norte-americano Billy Woodberry, autor do documentário “Mário”, sobre Mário Pinto de Andrade, fundador do MPLA e durante alguns anos casado com aquela pioneira do cinema de mulheres em África, autora do lendário “Sambizanga”.
A cerimónia de encerramento decorreu nas instalações do Miami Beach, na Ilha de Luanda, sob uma forte chuvada, tendo sido entregues os principais prémios do festival. A competição nacional foi vencida por “Fucking Globo”, da jovem Kamy Lara, que documentou o trabalho de vários artistas plásticos que ao longo de vários anos se reuniram no já mítico espaço do Hotel Globo. Quanto à competição internacional, o prémio foi obtido pelo veterano português Rui Simões, que em “Linha de Água”, sobre o trabalho de Victor Gama. Nascido em Angola e vivendo entre Luanda, Bruxelas e Sintra, o seu trabalho interseta várias expressões artísticas, nomeadamente a música e a própria criação de instrumentos musicais.
No rescaldo da quarta edição do Doc Luanda, o seu diretor, Jorge António, fez-nos o balanço do festival. “Foi dos melhores docs desde a primeira edição. Em termos de programação, de dinâmica, de convidados internacionais. A imprensa a dar uma cobertura enorme, o público a aparecer”, começou por nos dizer, salientando depois as dificuldades da sua organização: “Mas foi o mais difícil, porque perdemos parceiros, sofremos armadilhas, na tentativa de que o Doc Luanda derrapasse e que não conseguisse chegar ao fim. Mas estamos aqui na festa de encerramento e estamos já a trabalhar para o próximo ano, ou seja, não é fácil deitar-nos abaixo. Já estamos habituados, tanto eu como o Henrique Santos. Vivemos há muito tempo em Luanda, sabemos exatamente como funcionam as coisas. E conseguimos dar a volta, firmes na trincheira da luta.”
Aproveitámos para saber da parte de Jorge António como está o cinema em Angola. “Infelizmente sofre deste estado de coisas. Não existe uma estratégia da parte do Ministério da Cultura ou do Instituto de Cinema. Não há estratégias, não há financiamentos, as pessoas fazem os seus projetos um pouco aleatoriamente, em termos de apoios. Uns têm mais sorte e mais contactos do que outros com patrocínios. Mas estamos a falar de patrocínios, não estamos a falar de fundos. Um patrocínio não cobre um orçamento normal para as pretensões de uma longa-metragem ou mesmo de um documentário”.
Na perspetiva do diretor do festival, tal situação é um entrave à entrada do cinema angolano nos circuitos internacionais. “É uma luta constante, mas quem tem o poder de decisão não percebe isso”, afirma Jorge António. “As pessoas ficaram numa espécie de nível baixo, e esse nível baixo é o que é aceite pelas pessoas. Não há crítica, existe uma espécie de autocrítica nas redes sociais, que é o que os jovens fazem. Mas não conseguem sair de uma espécie de colete de forças e de limbo da mediocridade.”
Felizmente, como tivemos oportunidade de observar ao longo de vários dias em Luanda, há uma nova geração a lutar pelo seu futuro no cinema e no audiovisual, como admite Jorge António. “Há jovens que estão a trabalhar bem, que procuram coproduções, que procuram atingir fundos internacionais. O próprio Doc Luanda o ano passado lançou um concurso de apoio ao desenvolvimento de projetos. Tudo isto ajuda um pouco, mas não há respaldo institucional e ministerial. Não se sente nada a esse nível. A não ser que aconteça uma mudança radical o cinema e o audiovisual angolano não irão dar o salto.”