Domingos e Neusia são um jovem casal de Inhambane. Domingos não está contente a lavar carros e a não receber o que lhe é devido pelo patrão, e parte em busca de fortuna nas minas de ouro a céu aberto do norte de Moçambique.
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Entretanto, Neusia descobre que está grávida… “O Ouro e o Mundo”, de Ico Costa, passou por Roterdão, venceu o prémio da competição nacional do Indie Lisboa e acaba de estrear em todo o país. Estivemos a conversar com o realizador.
Como é que começou esta relação com Moçambique?
Começou em 2010. Eu ganhei uma bolsa Inov-Art, para jovens que tinham acabado cursos superiores nas áreas das artes. Eu queria ir para África, não necessariamente para Moçambique, mas através de um produtor moçambicano fui parar a uma associação cultural que fazia a prevenção do HIV através da música, e precisavam de alguém para fazer os vídeos e formar pessoas para depois os fazerem.
Quanto tempo é que esteve lá?
Estive um ano a fazer videoclipes, institucionais, pequenos documentários. Depois fui para França estudar, mas queria fazer uma curta e voltar a Moçambique. Fui para lá três meses, sem um guião, tinha um pequeno apoio e fiz o “Nyo Vweta Nafta”. Através dos castings conheci muitos miúdos. Moçambique é um país muito jovem, a média de idades é de 17 anos. Conheci muitas histórias e cada história puxava outra.
Estudou em Lisboa, em Buenos Aires, em França. De onde vem o desejo de África?
Precisamente para fugir desta Lisboa. Sempre vivi em Lisboa. Tenho sempre esta necessidade, às vezes debato-me com a ideia de ir para o campo. Nunca aconteceu porque o meu escape é ir para Moçambique. Não me imagino a fazer um filme em Lisboa. Não me interessa, já foram feitos milhões. Mas para mim fazer um filme é também sair do meu ritmo habitual, do meu quotidiano, ir à procura de coisas novas, estar imerso num lugar diferente. Estar aberto a receber coisas novas.
Mas já fez outros filmes em Portugal.
Sim, mas nunca em Lisboa. Nas beiras, em Oliveira do Hospital. Nunca fiz um filme em que ao fim do dia as pessoas fossem para casa. Sempre estivemos em equipas pequenas, no mesmo sítio. É a forma que eu mais gosto de fazer cinema.
A história deste jovem casal apareceu nesses encontros que fostes tendo com jovens moçambicanos?
Cada vez que ía a Inhambane e perguntava por alguém diziam-me que tinha ido para a África do Sul, para Maputo trabalhar ou para Nampula para ir ter com um tio ou com um primo em Tete. Há muita migração interna e também para a África do Sul. Mas não tão programada como aqui. Se calhar nos tempos do salto para Paris era parecido. De repente alguém precisa de ti e de uma semana para a outra vão à procura de algo melhor. Há sempre essa ideia de que lá fora se está melhor. E muitas vezes é uma ilusão.
E os atores, também saíram desses castings?
O Domingos já trabalha comigo há bastante tempo. Já era um dos atores dessa curta que fiz em 2015. Fiquei maravilhado com aquele rapaz quando o conheci. É muito fotogénico, tem um grande à-vontade, é um rapaz com muitas dificuldades para sobreviver, mas que é inteligente, e bem motivado consegue ser um ótimo ator.
E a jovem que interpreta a Neusia, quem é?
Passámos muito tempo em castings com muitas pessoas que não se adequavam ao papel. E perguntaram-me porque não tentava com a Neusia, a namorada do Domingos. Ela era muito tímida, mas quando consegui ganhar a confiança dela percebi que era a pessoa ideal. Isso vê-se no início do filme, naquela cena de intimidade bastante forte. Se calhar só seria alcançada com a intimidade de um casal como eles. Facilitou muito o filme, porque era exatamente isso que eu procurava. Eles já se esqueciam que estávamos lá.
De certa forma, esbate-se a fronteira entre o real e a ficção do filme.
Isso vê-se também quando estão à distância e falam ao telefone. Sente-se aquela saudade, dela estar em casa sozinha. Os atores são todos não profissionais e percebi que os diálogos não podiam ser ditos da forma como eu os escrevi. O que acontece nas cenas foi escrito por mim mas a maior parte dos diálogos são improvisados. Dei-lhes liberdade para dizerem o que pensam e terem a sua palavra no filme.
As cenas da garimpagem foram mesmo rodadas em minas de ouro?
Ai de mim estar a recriar um local de garimpo. Isso estaria muito longe do cinema que gosto de fazer. É mesmo um lugar de garimpo, onde ao lado há grandes empresas, chinesas principalmente, que exploram aquilo e estão a dar cabo da natureza com grandes máquinas. E quando lhes interessa partem para outros terrenos. E eles vão lá apanhar os restos. No fundo, aqueles garimpeiros não apanham pepitas, apanham poeira.
Onde é que filmou exatamente?
Fui primeiro a Cabo Delgado, porque soube que havia lá muita mineração. Mas em 2019, quando fui lá, já estava no início dos conflitos. Ouvi falar em Manica, fui lá ver, fui bem recebido, as pessoas ao princípio ficaram um pouco espantadas com uns brancos com umas câmaras, mas passámos lá muito tempo com eles antes de filmar. Partilhámos com eles o que nós tínhamos e eles connosco. Tudo muito tranquilo. Há lá pessoa a escavar a terra a procurar ouro e outras a plantar mandioca.
O filme tem alguns planos hipnóticos, quando a câmara segue o Domingos pelas ruas da cidade. Como é que filmou essas cenas, ninguém olha para a câmara.
Pode ser surpreendente, mas em Moçambique raramente repeti um plano porque alguém olha para a câmara. Mas não avisamos ninguém, não criamos nenhum aparato, que faça com que as pessoas olhem para nós. É estar ká, até as pessoas se esquecerem que nós existimos. Normalmente digo ao operador de câmara para se desviar se sentir que alguém está a olhar para a câmara. O sistema não é nada rígido, em termos formais.
Quantas pessoas é que iam nesses planos longos?
Éramos quatro, o Raul Domingues na câmara, às vezes alguém a segurá-lo, um rapaz moçambicano no som e eu. O Raul já fez um filme e é montador dos meus filmes, nas minas caiu num buraco. Foi uma queda aparatosa, mas não sofreu nada. Eu gosto dos planos-sequência porque é uma forma de mostrar as personagens no espaço envolvente.
Como é que está o cinema em Moçambique?
Não há dinheiro. Mesmo agora com o digital, com câmaras mais baratas e filmes que se façam com cinco pessoas, continua a ser uma coisa cara. Moçambique não tem dinheiro e obviamente não há indústria. As pessoas que vão fazendo cinema em Maputo são privilegiadas, ou ligadas à publicidade. Gostava muito, é um projeto meu, fazer workshops, criar condições para que jovens com câmaras pequenas, nem que seja de telemóveis, consigam fazer um cinema mais de urgência.
Há projetos concretos de outros trabalhos em Moçambique?
Há um realizador moçambicano, o Inadelso Cossa, que fez um filme muito bonito, “As Noites Ainda Cheiram a Pólvora”. Agora vou fazer um filme com ele, como produtor. Mas ele vive cá. Viver e trabalhar só lá é muito difícil. Para o filme dele arranjou apoios na Noruega, na Alemanha, em França. É todo um processo.
Do conhecimento que tem, da sua vivência lá, do que é que a juventude moçambicana mais precisa hoje?
Eles andam a dizer isso nas ruas, neste momento. Tem havido muitas manifestações, após as eleições. Eu estive lá a filmar, na altura da campanha. O que eles mais precisam é de liberdade. O que eles querem é trabalho, liberdade de expressão, eleições justas, menos corrupção. O que querem é democracia e não têm nada disso. Por isso é que a juventude está tão zangada. Mas acreditam que as coisas podem mudar. Estão a fazer o seu trabalho.