Um dos nomes maiores do cinema chinês da atualidade, autor de obras que já por cá passaram, como “Still Life – Natureza Morta”, “Se as Montanhas Se Afastam” ou “As Cinzas Brancas Mais Puras”, Jia Zhang-ke estreia agora o seu filme mais recente, “Marés Vivas”.
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O filme foi construído ao longo de mais de vinte anos, como a história que nos conta, a busca de um amor perdido por parte da protagonista, uma vez mais Tao Zhao, esposa do realizador, tendo como pano de fundo as mudanças ocorridas na China durante esse período. Ainda em Cannes, onde o filme estreara mundialmente, estivemos a conversar com o realizador.
A génese e o processo de produção deste filme foram bastante diferentes do habitual.
O filme é uma combinação de material que já tinha filmado antes, a partir de 2001, e novas imagens captadas em 2022, ainda na altura do Covid. A parte contemporânea foi filmada em Zhuhai, no sul do país. Mas tivemos de fazer alguns rearranjos, para manter a coerência da estrutura do filme.
Tendo começado a filmar em 2001, porque não terminou o filme nessa altura?
Na altura estava muito entusiasmado com o que se estava a passar na China, com as mudanças que estavam à vista, com o clima de esperança, com uma espécie de energia caótica que se sentia. Era isso que eu queria captar. E coincidiu com a chegada das câmaras digitais. Mas na altura não tinha nenhum filme com uma forma definida em mente. Só queria filmar o mais que podia, queria criar algo quase impressionista, não linear. Material do tipo documental, mas também com atores e atrizes.
O que lhe deu vontade de terminar o filme agora?
Fui filmando enquanto fazia outros filmes. Não tinha nenhuma ideia quando é que iria parar de filmar, mas a época do Covid tornou-se a ideal para concluir este projeto. E foi ao editar esse material que tive a ideia de juntar esta componente contemporânea. Assim, escrevi um guião para tornar todo este material coerente, em termos narrativos.
E a China mudou, da forma como esperava em 2001?
É fácil falar de transformações económicas ou políticas na China. Mas a mim, o que me interessa são as transformações emocionais, como é que as pessoas vivem o seu quotidiano. As transformações económicas e políticas são apenas o pano de fundo da vida das pessoas. Quando estava a começar a preparar este filme, o que me interessou foi mostrar como é que eu, emocionalmente, tinha mudado ao longo destes anos.
E conseguiu chegar a uma conclusão, nesse sentido?
Em 2001 estávamos todos excitados com a ideia de um futuro mais livre, de uma vida melhor. Estávamos a entrar num novo milénio. Eram esses os sonhos e as aspirações da minha geração. Agora, tivemos de enfrentar a realidade do Covid, o confinamento. Quarentenas, pessoas em isolamento, o fecho das fronteiras, a impossibilidade de viajar. Foi um choque, comparado com o que tínhamos sonhado antes. Essa justaposição foi o que quis também mostrar no filme. A curva emocional por que passámos.
A evolução tecnológica sente-se muito no filme, entre as várias fases em que se desenrola.
As novas tecnologias mudaram por completo a paisagem do país. Subitamente, começaram a aparecer carros sem condutor, robôs por todo o lado. Há dez anos as pessoas pensavam que isto só poderia acontecer num futuro mais distante. Ou em filmes de fantasia, de ficção científica. Mas hoje, sobretudo depois do Covid, estas tecnologias tornaram-se muito populares, são quase omnipresentes. Na China podem ver-se robôs em hotéis, em restaurantes, nos escritórios.
Diria que este filme é uma súmula do seu trabalho anterior, ou o fim de um ciclo?
Pode entender-se o filme como uma retrospetiva da minha evolução enquanto cineasta. Como as componentes visuais e sonoras que juntei até aqui podem expressar as minhas emoções e sentimentos enquanto cineasta neste preciso momento. As imagens que captei no passado não mostram só as mudanças na China como a minha evolução como cineasta. Que tipo de realizador era na altura, como é que interagia com o espaço e com a sociedade. E pode ver-se a minha evolução, vinte e tal anos depois.
Como é que trabalha com a sua esposa, que está em quase todos os seus filmes?
Trabalhamos juntos há muitos anos mas a forma como trabalhamos também tem mudado. Ao princípio, dava-lhe direções muito concretas em relação ao que esperava dela, mas fui-me apercebendo que ao proceder assim estava a criar muitas limitações, não lhe dando tanto espaço para criar as suas personagens.
Que método utiliza então hoje em dia?
Digo-lhe apenas porque tinha escolhido aquele local em particular ou aquela cena específica. E que emoções queria criar com aquela cena em particular. Comecei a transmitir-lhe o estado de espírito das suas personagens. Isto é suficiente para que ela use a sua própria imaginação e a sua interpretação de como dar vida à personagem.
Neste filme ela também mostra a sua evolução como atriz…
Ela trás ao filme a sua perspetiva feminina da personagem que tento captar no filme. E examina segundo a perspetiva feminina o filme que estou a fazer. Penso que ela viu a verdadeira essência da personagem. O mais importante é mostrar que ela tem aquele espírito independente, apesar de todos os desafios que tem de enfrentar. É uma mulher com uma consciência feminina bem desperta. Graças a ela, conseguimos criar esta personagem.