Aconteceu há 50 anos o "Woodstock português" em Vilar de Mouros. A chama dessa libertação inspirou todos os festivais desde então.
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Imaginem um país envolvido em três teatros de guerra no continente africano e com dezenas de milhares de jovens mobilizados. Um país que vivia em ditadura há 45 anos e em que a opinião errada podia valer a tortura, a prisão ou o exílio. Um país em que nenhuma publicação escapava ao exame prévio da censura. E agora imaginem neste país um festival de música para 30 mil pessoas onde o sexo se praticava ao ar livre, a droga era consumida a rodos e os símbolos de libertação se multiplicavam em bandeiras e nas vestimentas do público. Será esta uma história credível? Definitivamente não, mas foi o que aconteceu há 50 anos, no fim de semana de 7 e 8 de agosto de 1971, junto à pequena aldeia de Vilar de Mouros, no Alto Minho. O "Woodstock português", como ficou conhecido, não durou apenas dois dias. Esteve presente no espírito de todos os festivais que se realizaram desde que este país se libertou.
Nome incontornável para compreender o fenómeno é o de António Barge, médico da região que já operara uma significativa transformação no festival de folclore que se realizava em Vilar de Mouros desde 1965. Reuniu no mesmo evento, em 1968, o regime e a oposição, convidando a banda da GNR e músicos de intervenção como Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira. Mas Barge não estava satisfeito. Interrompeu o festival durante três anos para lhe mudar a escala e o alcance, apontando à celebração dos 900 anos da entrega de Vilar de Mouros à antiga diocese de Tui, em 1971.
Dois objetivos nortearam o novo certame, que se realizou em três fins de semana: tornar a música acessível a todos e dar visibilidade à região, mostrando o seu potencial turístico. "Era um visionário em vários sentidos", diz Fernando Zamith, jornalista e professor que escreveu a mais completa obra sobre o festival: "Vilar de Mouros - 35 anos de festivais". "Foi alguém que provou que era possível fazer um evento destas características em plena ditadura. Provou que havia aceitação e gente interessada. Os outros festivais devem-lhe tudo." E não foi certamente a perspetiva de negócio a orientar Barge, que logrou a autorização do Secretariado Nacional de Informação (SNI) para realizar o evento muito graças à sua relação de amizade com o comandante-geral da GNR: "Perdeu imenso dinheiro", diz Zamith. "O SNI apoiou o festival com apenas 30 contos e o custo total foi de 2500 contos. Só o cachet do Elton John custou 600." Recorde-se que o bilhete diário custava 50 escudos.
"Sexo pela primeira vez"
"Música para a juventude" foi o lema para o fim de semana onde atuaram duas grandes vedetas internacionais - Elton John e os Manfred Mann - e o quem é quem da cena musical portuguesa da época (o fim de semana anterior fora dedicado à música clássica e o seguinte iria acolher Amália e Duo Ouro Negro). "Nunca tinha estado com 20 mil pessoas à minha frente", diz Tozé Brito, na altura membro do Quarteto 1111: "Já tínhamos conhecimento do que fora o Woodstock e o festival da Ilha de Wight e agora sentíamos que Portugal estava a dar esse passo. Era a sensação de entrar em território virgem, havia uma mudança nos costumes, uma abertura às drogas e ao sexo. E o espaço em que tudo acontecia era deslumbrante." Até a presença da polícia e da PIDE, que identificou várias pessoas e fez um relatório sobre o evento (ver caixa), era um "ingrediente extra", diz. "Topávamos os PIDES à distância e tínhamos de os fintar."
Fintar a censura foi o que os Quarteto 1111 fizeram ao longo de toda a atuação, diz José Cid, o então líder da banda: "Eu já tinha 28 temas censurados à época. Tivemos de cantar em inglês ou modificar as letras." Cid recorda dois momentos altos do espetáculo: a abertura com uma versão de "Move over", de Janis Joplin, "que deixou os músicos do Elton John boquiabertos." E a interpretação do "hino de libertação dos escravos", "Glory, glory, hallelujah!", que conquistou definitivamente a plateia. O cantor lembra ainda as enormes limitações técnicas e o facto do Quarteto 1111 ter emprestado a aparelhagem para o concerto de Elton John.
Esse concerto foi visto em cima do palco, atrás dos bombos, por Álvaro Azevedo, baterista dos Pop Five Music Incorporated. "Não havia grades nem segurança, o palco era um happening com músicos sentados e a beber. Falava-se de paz e amor. Este festival foi como ter sexo pela primeira vez."