Festival de artes de rua abre esta quinta-feira em Santa Maria da Feira e prolonga-se até domingo, com mais de 100 espetáculos espalhados por 15 palcos.
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O festival de teatro de rua Imaginarius arranca esta quinta-feira em Santa Maria da Feira e, entre 41 propostas originais de um programa vasto que dura até domingo, procura valorizar o efémero recorrendo a escritos de areia criados por robôs e jogos de 'pinball' com óculos que geram hologramas.
Esta 23.ª edição, que conta com um orçamento de meio milhão de euros, terá 15 palcos distribuídos por salas convencionais, praças, jardins e outros espaços públicos da cidade, recebendo 41 companhias de 12 nacionalidades, o que representa 190 artistas, num total de 144 exibições e 130 horas de conteúdos.
Os dois primeiros destaques do cartaz vão para o artista neerlandês Gijs van Bon, que terá a sua máquina-escriba em funcionamento no sábado à tarde na Biblioteca Municipal, e para a companhia espanhola Holoqué, que sexta e sábado colocará máquinas de 'flippers' na Casa do Moinho.
O robô que escreve
No primeiro caso, a performance intitula-se "Skryf/Escriba" e, após a estreia em Utrecht, em 2010, já foi apresentada 350 vezes em cerca de 20 países. A peça recorre a um pequeno robô móvel que, a diferentes graus de velocidade, deixa sobre o solo vários escritos em areia, constituam eles uma palavra só ou um texto mais extenso.
Desvendando as palavras apenas à medida que se desloca para novos grupos de letras, o robô cria frases "cruas e transientes" cuja mensagem implícita, segundo o autor do conceito, é a de que "tudo é transitório".
"A partir de um monte de areia quase irrelevante, a máquina cria a magia da palavra e depois são os seres humanos, a natureza e a passagem do tempo os responsáveis por desintegrá-la outra vez", explicou Gijs van Bon à agência Lusa.
Steampunk e máquinas de pinball
A companhia Holoqué, por sua vez, aposta numa instalação que recorre à corrente estética e ao género literário de ficção científica steampunk - com o seu romantismo simultaneamente de época e futurista, ao relacionar a cultura do século XIX com o apreço por máquinas e invenções - e combina-os com jogos de pinball, em que os gestos do pulso propulsionam bolas até determinadas posições de uma superfície com obstáculos.
Em "Steampinballs", os participantes vão munir-se de um capacete de realidade virtual não apenas para jogar 'flippers', mas também para viver uma experiência holográfica que, segundo a produtora espanhola Núria Prunera, cruza "artes cénicas, artesanato e tecnologia imersiva".
Desde a sua estreia, no ano passado, no festival FiraTàrrega, na Catalunha, a instalação ainda só passou pela Bélgica e chega agora a Portugal para revelar o potencial lúdico da interação entre "as habilidades próprias do jogo clássico e a realidade virtual mista".
Núria Prunera revela como o diretor artístico da companhia, Diego Caicedo, concebeu o projeto a partir de diferentes elementos do quotidiano: "Descontextualizou-os das suas funções originais e transformou-os num mundo paralelo, em que, por um lado, há uma arca do tesouro, um relógio de parede antigo, uma guitarra, o quadro da Mona Lisa e, por outro, o selo que distingue a companhia Holoqué, que são os hologramas".
O objetivo é usar a tecnologia para ligar o público a um mundo imaginário, na consciência de que há uma realidade "antes e depois da pandemia" da covid-19.
Também há realidade virtual
Entre as 41 propostas a apresentar até domingo, inclui-se uma performances de realidade virtual peculiar em que os abraços constituem "espaços pacíficos" entre o corpo de uns e outros.
O projeto intitula-se "Peaceful places / Lugares pacíficos" e chega ao Imaginarius pela mão da coreógrafa, videógrafa e antropóloga italiana Margherita Landi. Nos claustros do Museu Convento dos Loios, a artista orientará um total seis sessões de 20 minutos cada, entre as 19.45 e as 21.45 horas, sexta-feira e sábado, sempre mediante inscrição prévia no site do festival.
"A ideia surgiu-nos durante a pandemia de covid-19, quando refletimos muito sobre a forma como a tecnologia estava a tornar-se uma parte importante dos relacionamentos íntimos e a carência de toque estava a afetar os nossos corpos", disse Margherita Landi à Lusa.
A primeira apresentação do conceito foi em maio de 2022 no Festival dell'Italia Gentile, em Florença, e nessa altura combinou abraços virtuais com abraços reais, porque a guerra na Ucrânia intensificara-se dois meses antes e, em parceria com a organização antinuclear Senza Atomica, a companhia de Margherita, a Landi Lanza, quis focar-se numa mensagem de paz.
No seu formato definitivo, e após apresentações na Bulgária e nos Estados Unidos que recorreram apenas a vídeo, Portugal é o primeiro país em que "Peaceful Places" se apresenta com óculos de realidade virtual e abraços que, para os participantes, serão a pessoas de um mundo imaginado.
"Na pandemia, o medo dos outros corpos era sentido como se eles fossem armas letais e, como ficámos preocupados com o hábito de nos evitarmos uns aos outros, pensámos em construir um espaço seguro em que pudéssemos praticar a proximidade", recordou Margherita Landi. "Em contraste com essa ideia dos corpos como armas, propusemos corpos como espaços pacíficos e é por isso que, nesta performance, os lugares tranquilos são entre os nossos braços".
A experiência vai explorar a mecânica do próprio abraço, na sua dinâmica física e psicológica. Ao perceber melhor o seu papel nesse gesto e o que ele implica em termos de gestão de peso, respiração e ritmo, quem abraça "toma consciência do apoio que pode oferecer e receber, e do respeito que é necessário -- consigo mesmo e com os outros - para obter essa proximidade".
O que a artista e antropóloga italiana quer realçar com o recurso à realidade virtual é que "a tecnologia pode ser uma boa ferramenta para gerar emoções e questões, mas nunca substituirá um abraço real". A performance no Imaginarius constitui assim "uma experiência de proximidade, mas também uma experiência de ausência, porque o toque é só imaginado".
Margherita Landi diz que o resultado é "profundamente poético", por envolver "uma humanidade atenta e emocional em plena rua, num contexto do quotidiano", deixando que a mensagem política oscile entre a virtuosidade performativa e o sentimento, a inclusão.
"Neste trabalho, qualquer pessoa pode generosamente oferecer a beleza do seu gesto", afirma a artista. "Muitas vezes testemunhamos como os participantes são invadidos pelas emoções e isso toca-nos sempre profundamente, já que, na maioria das vezes, as pessoas sentem a necessidade de um abraço real no final da experiência e essa é precisamente a resposta que queríamos evocar".
Outros destaque do cartaz
Dois outros espetáculos muito aguardados envolvem uma torre de contentores com 19 metros de altura e uma coreografia com fatos iluminados por lasers.
Com entrada livre, a primeira dessas propostas é "Waterlitz", uma coprodução franco-britânica de grande formato em que a companhia Générik Vapeur leva ao terreiro do quartel dos bombeiros uma combinação de dança, música e pirotecnia que reflete sobre opressão e liberdade, e, com bilhetes a 3 euros.
A segunda proposta é "Blu infinito", em que o coletivo italiano Evolution Dance Theater recorre a luzes, lasers, jogos de espelhos, fotoluminescência e telas químicas para transformar o palco do Cineteatro António Lamoso num mundo subaquático.
Na programação de quatro dias desse festival do distrito de Aveiro e da Área Metropolitana do Porto, "Waterlitz" terá apenas duas apresentações de uma hora cada - na sexta e no sábado, sempre às 23 horas - mas, segundo Pierre Berthelot, codiretor da companhia, isso exige "15 dias inteiros" de montagens e preparativos, envolvendo recursos como nove contentores, vários camiões de transporte, um pássaro de madeira, 25 artistas, alguns técnicos locais e um quilómetro de cabos.
O objetivo é proporcionar um espetáculo que, embora carregado de imagens de ditadores atuais, "não é moralista" e constitui sobretudo "uma fábula" sobre política, ecologia e sociedade -- no que a segurança do espaço público também merece reflexão, por esse se mostrar "cada vez mais fechado devido à covid, a ataques e protestos" e também mais restringido por "orçamentos culturais sempre a decrescer".
Com 25 apresentações desde a sua estreia em 2012 na cidade francesa de Bethune, a torre de contentores desse espetáculo vertical é assim encarada pela codiretora artística dos Générik Vapeur como "um totem humano", símbolo sagrado e protetor que assombra os portos e cidades atuais.
"Falamos de evolução e revolução, de como a invenção industrial começa a invadir a paisagem urbana, de como muitas linguagens estão a desaparecer do mundo...", explicou Caty Avram, assegurando que o público "tem a liberdade de interpretar como quiser" os sons, imagens e ações do espetáculo.
Mundo subaquático e magia
Já no caso de "Blu Infinito", o cenário evoca animais aquáticos, algas marinhas, corais e criaturas fantásticas, todos envolvidos por diferentes luzes, sejam as tradicionais, os raios laser, focos ultravioleta ou fotoluminescências.
Desde o seu lançamento em Trieste em 2021, o espetáculo dos Evolution Dance Theater já foi apresentado 110 vezes em vários países e estreia-se agora em Portugal para instilar sentimentos de proteção marinha com ilusões, truques de magia e telas especiais que absorvem luz e a libertam lentamente.
"A nossa especialidade é mudar truques, adereços e música de forma a criar ondas agradáveis de diferente dinâmica", afirmou Nadessja Casavecchia, codiretora da companhia. "O desafio é criar um mundo mágico, sem gravidade, que retenha a atenção e as emoções da audiência, criando sempre algo novo e nunca visto, que mantenha em níveis altos o interesse e o espanto do público", acrescenta.
Grata por poder dissimular num palco convencional o que outros artistas sujeitam a maior escrutínio do público por atuarem na rua, em condições tão próximas e mais imprevistas, a italiana promete para as sessões do Cineteatro António Lamoso, sexta e sábado às 21.30 e domingo às 11 horas, "um mundo subaquático onde coisas mágicas acontecem".
"Começamos com um bom mergulho nas profundezas dos oceanos, para que os espectadores possam descobrir muitas personagens engraçadas e exóticas, e depois deixamo-los imaginar o resto, para que sejam levados numa montanha-russa de emoções e sensações", conclui Nadessja Casavecchia.