Roger Waters em Lisboa: os crimes de guerra e os direitos humanos entram num bar
Roger Waters encheu, esta sexta-feira à noite, a Altice Arena, na primeira data que abriu a parte europeia da digressão "This is not a Drill" numa experiência audiovisual única que "deu vida" a vários clássicos dos Pink Floyd e outros temas a solo.
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Com um discurso eminentemente político, feito principalmente através dos ecrãs gigantes, o britânico não poupou críticas a vários líderes mundiais, ao Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América e à normalização da violência pelas partilhas, "likes" e visualizações nas redes sociais. Este sábado segue-se mais uma noite esgotada na maior sala de espetáculos do país.
Trinta minutos após a hora marcada, as luzes apagam e um "voiceover" deixa o aviso: "se gostam da música de Pink Floyd, mas não quiserem ouvir as políticas de Roger Waters podem desandar e ir para o bar". O palco de 360º, dividido em quatro por ecrãs gigantes, gera alguma curiosidade: "Onde é que ele vai estar?", perguntavam alguns assim que chegaram à sala. Só se vê parte da banda que, num cenário apocalíptico, começa a tocar "Comfortably Numb". Não há ainda sinal do ex-Pink Floyd. Até que os ecrãs sobem ao som de um helicóptero, seguido por um holofote que percorre a sala toda. O efeito parece tão real que é impossível não olhar para cima ou ficar alerta.
Em segundos, o palco fica totalmente descoberto e Roger Waters não desaponta pondo o público logo a dançar ao som de "Another Brick in the Wall". "Hey, teacher, leave them kids alone", cantam bem alto com os braços no ar como se esperassem há muito por este momento. Ignoram a recomendação (também feita no início) de não usarem o telemóvel durante o espetáculo para uma melhor experiência. É preciso captar o momento.
Com o baixo na mão, o músico de 79 anos continua esta "provocação" política com "The Powers That Be", uma canção ilustrada com episódios de brutalidade policial, sendo lembrados os nomes de algumas vítimas que se tornaram símbolos da luta antirracista nos EUA e no mundo, como Breonna Taylor e George Floyd. Mantém-se em "The Bravery Of Being Out of Range", denunciando os crimes de guerra nas mãos de vários presidentes norte-americanos. Joe Biden não escapa à crítica e por cima do seu rosto é feito o alerta de que "está apenas a começar".
Um sítio onde nos podemos encontrar com amigos ou estranhos e conversar, numa altura em que o mais importante é conversar, sobre a Ucrânia, mas também outras coisas
Depois de cumprimentar a multidão que não esconde o seu entusiasmo, pedindo ajuda para o conseguir fazer em português, Waters introduz o seu mais recente tema, "The Bar". Escrita durante o confinamento, esta é uma canção em homenagem às mulheres indígenas de Standing Rock, no estado da Dacota do Norte, que, em 2016, protestaram contra a construção do oleoduto na reserva natural. Sentado ao piano, explica que este será um bar durante o espetáculo: "um sítio onde nos podemos encontrar com amigos ou estranhos e conversar, numa altura em que o mais importante é conversar, sobre a Ucrânia, mas também outras coisas". Waters segue para o tema sem se alargar muito mais sobre a sua posição em relação à guerra e com alguma hesitação por parte do público.
Mergulha-se a seguir numa narrativa contada, na primeira pessoa, através dos ecrãs. O público viaja até aos anos 70 com "Have a Cigar", acompanhada nas telas gigantes por fotografias dos antigos companheiros. Mas a história recua bem mais no tempo ainda nem a banda existia e Waters e Syd Barrett eram miúdos. Ao companheiro de banda, dedicou a música que marcou o serão e deixou a sala emocionada. "Wish You Were Here", que dá nome ao 9.º álbum dos Pink Floyd, inspirado de certa forma à condição mental do antigo vocalista e guitarrista.
Já perto da segunda parte do concerto, o músico entra na "distopia corporativa" com "Sheep", lembrando a obra de George Orwell. A surpresa é grande quando no meio de tantos elementos pensados ao pormenor neste espetáculo surge uma ovelha insuflável gigante que flutua rodopiando pela sala. Do universo de "Animals", lançado em 1977, passa também a flutuar o famoso porco voador com a frase "Steal from the poor, give to the rich", reforçando o repto anti-capitalista passado em "Money". Após o intervalo, Waters sobe ao palco num ato mais "teatral". Acompanhado por dois guardas e vestido com uma farda interpreta "In the Flesh", que termina ao fingir atingir a plateia com uma arma de fogo. Um momento que foi em parte desvendado num aviso aos mais suscetíveis que se podia ler nas filas para entrar na arena.
Nunca vivemos um momento tão perigoso como este
De repente, volta-se à realidade com as imagens que antecedem a "Run Like Hell": dois repórteres de imagem da Reuters são abatidos pelas forças norte-americanas em Bagdade, no Iraque, em 2007, pensando-se que estivessem armados. "E como é que este crime foi conhecido?", lança-se a pergunta nos ecrãs. Por Chelsea Manning, ex-militar, e Julian Assange, criador do WikiLeads, que o cantor pede para ser libertado. Os aplausos e assobios não parecem ter fim durante a canção a solo "Déjà Vu", na qual Waters apela aos direitos dos refugiados, das mulheres, das pessoas trans e do povo palestiniano e do Iémen, "todos estes direitos humanos".
É em "Two Suns in the Sunset", a última canção do disco "The Final Cut" - também este o último que gravou com a banda antes de a deixar -, que o ex-Pink Floyd volta a trazer a invasão na Ucrânia para cima da mesa, alertando que "nunca vivemos um momento tão perigoso como este". "Somos amigos num bar, por isso posso dizer o que quero", defende. E pergunta se Portugal faz parte da NATO, o que provocou algumas respostas na sala.
A mulher, Kamila Chavis "não costuma ir a muitos dos concertos", mas acompanhou-o até Lisboa
Ao fim de duas horas de espetáculo, Waters repete o tema "The Bar", dedicando-o ao irmão que partilhou ter falecido no início do ano e à sua mulher, Kamila Chavis que "não costuma ir a muitos dos concertos", mas esta noite decidiu acompanhá-lo até Lisboa. Já ao piano, pede que o resto da banda se junte a ele num brinde com madre mezcal. Rodeado com Jonathan Wilson e Seamus Blake - cujos solos de guitarra e saxofone foram dos mais aplaudidos da noite, respetivamente -, as cantoras Amanda Belair e Shanay Johnson, Jon Carin e Robert Walker nas teclas, Dave Kilminster na guitarra, Gus Seyffert na guitarra e baixo e Joey Waronker na bateria, o britânico fecha o bar com o público a aplaudir de pé.