Estudo pioneiro da Gulbenkian sobre fruição da atividade artística revela "fortes clivagens sociais e geracionais."
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Há três grandes clivagens na fruição das práticas culturais em Portugal: o rendimento (55% ganha menos de 800 euros), o grau de ensino (57,8% tem o terceiro ciclo ou menos) e a idade (41,5% tem mais de 55 anos). A combinação destes três fatores ajuda a entender, por exemplo, por que razão quase toda a população vê televisão todos os dias (90%) mas mais de metade (61%) não leu um livro em 12 meses.
Esta é apenas uma das inúmeras conclusões a que permite chegar o estudo pioneiro encomendado pela Fundação Calouste Gulbenkian ao Instituto de Ciências Sociais (ICS) sobre as práticas culturais dos portugueses em 2020. O relatório foi apresentado, terça-feira, em conferência de imprensa e tem como um dos seus objetivos trazer novos dados para um debate que ajude, também, a responder a esta questão: "É a cultura um fator de desigualdade e exclusão?"
Coordenado por José Machado Pais, Pedro Magalhães e Miguel Lobo Antunes, o diagnóstico parte de uma amostra com 2000 mil inquiridos e permite também refletir sobre o tipo de cartaz cultural oferecido. "É preciso colocar na equação a procura e não apenas a oferta", defende José Machado Pais, doutorado em Sociologia. Para isso, "é necessário identificar as razões que levam os inquiridos a envolver-se, ou não, com as práticas culturais". A esse propósito, o inquérito mostra que 35% dos inquiridos não tem conhecimento para desfrutar da oferta cultural.
Daí que Miguel Lobo Antunes, antigo administrador da Culturgest e do Centro Cultural de Belém, coloque também a tónica nos programadores culturais e decisores políticos: "as práticas não podem deixar de ter em vista não apenas os públicos fidelizados mas também os potencialmente interessados ou mobilizáveis".
Por outro lado, fica amplamente demonstrado, continua Machado Pais, "que a educação leva à emancipação cultural, independentemente das origens sociais dos inquiridos". E que toda a prática cultural é potenciada pelo exercício da leitura. "Um leitor de livros tem maior propensão para desenvolver outras práticas culturais, donde todo o investimento feito neste sentido, em contexto familiar, escolar ou nos media, é bem vindo."
Em termos geográficos, notou Lobo Antunes num dos capítulos do livro "Práticas Culturais dos Portugueses", é mais difícil ter certezas. E pergunta: "Porque é que se vai mais a espetáculos de dança no Norte e no Algarve do que em Lisboa? Porque é que o Alentejo visita mais museus do que a média nacional? O investigador admite não ter resposta. Como também não tem explicação para Portugal ser o único país da União Europeia em que as mulheres têm menos participação cultural do que os homens. Mas sublinha que é preciso encontrar as causas e os efeitos disso, para depois "adotar remédios".
Sete áreas, sete diagnósticos
Internet - 100% dos jovens estão conectados
A percentagem de portugueses que utilizam a internet (71%) é inferior à média da União Europeia (87%). Em causa está a "forte clivagem geracional" dos inquiridos: enquanto 100% das pessoas entre os 15 aos 24 anos afirmam ter usado a internet, apenas um quarto da população com 65 anos ou mais diz ter feito o mesmo. Os desconectados são os idosos, com baixos níveis de intrusão e de rendimento. Entre os utilizadores mais apetrechados, o telemóvel é apontado por 89% como dispositivo preferencial.
Em Portugal, a internet é mais usada para trabalho ou estudo (18 horas/semana) do que para lazer (10 horas/semana). Mas aqueles que a usam por prazer (82%) representam o dobro dos que a usam para trabalhar (41%). E são os homens que investem mais horas: 12 horas por semana contra nove gastas pelas mulheres.
Em relação às práticas culturais online, o perfil mais inclusivo é o de quem procura informação (42%). São os que têm rendimento mais alto e ensino superior.
Por outro lado, os inquiridos revelam que uma ou mais vezes por mês partilharam conteúdos culturais (20%), leram ou escreveram em blogues (21%) e interagiram com temas culturais (25%). "Estes indicadores sinalizam as potencialidades digitais no incremento da participação cultural, não apenas numa posição recetiva mas participativa", sublinha José Machado Pais.
Durante a pandemia, as práticas culturais através da internet foram intensificadas por parte dos mais jovens, que viram mais filmes (40%), leram mais livros jornais e revistas online (21%) e viram mais espetáculos de música (16%).
Televisão e rádio - 90% vê televisão todos os dias
A televisão é central na vida dos portugueses: 90% diz ter visto diariamente TV, o que significa mais do dobro dos que ouviram rádio (40%). Os idosos, com níveis de instrução e rendimentos baixos são as pessoas mais expostas ao audiovisual. Os programas mais vistos incluem notícias, reportagens e informação (81%). Quanto à rádio, ouvida sobretudo em deslocações de carro (60%), os programas mais seguidos são os de informação (59%) e música popular (50%).
Leitura e bibliotecas - Mais de metade não leu um livro
Mais de metade dos portugueses (61%) não leu um único livro no último ano, um valor muito superior ao de Espanha (38%). A maioria das pessoas que lê, fá-lo por prazer (68%). E aqui destacam-se as pessoas mais velhas e as mulheres. A percentagem de leitores de livros (39%) aproxima-se da percentagem de leitores de jornais (43%). Quanto ao género, sobressai o romance (46%) e, nos jornais, os generalistas ou diários.
Os mais assíduos leitores de livros têm ensino superior e pais com o mesmo nível de ensino. "Isto sugere que os hábitos de leitura inscrevem-se em processos de socialização familiar", constata José Machado Pais. Ainda assim, a maioria dos inquiridos diz não ter beneficiado de estímulos à leitura por parte da família. Ou seja, ninguém os acompanhou a uma livraria (71%) ou sequer lhes ofereceu um livro (47%).
Museus e monumentos - Maioria visita outros concelhos
Os espaços culturais mais visitados foram os monumentos históricos (31%) e os museus (28%). A maior parte das visitas (58%) foi realizada noutro concelho do país. "Este trânsito interconcelhio afigura-se potenciador do reforço da identidade nacional". Mas o preço das entradas é apontado por 21% dos inquiridos como razão para não ir.
Cinema - 82% dos jovens vão ao cinema
A maioria dos jovens entre os 15 e os 24 anos foi ao cinema nos 12 meses anteriores à pandemia (82%), o que representa o dobro da população geral (41%). Os cinéfilos mais assíduos residem em Lisboa e na Madeira. 14% considera elevado o preço dos bilhetes.
Espetáculos ao vivo - Apenas 6% assiste a música clássica
Os festivais e festas locais concentram a preferência dos portugueses (38%), bem como os concertos de música (24%), sobretudo por parte de quem tem habilitações escolares mais baixas. Já o teatro (13%), a música clássica (6%) e a ópera ( 2%) não têm o mesmo poder de atração.
Práticas artísticas - Escola é a peça chave para 61%
Mais de metade dos inquiridos (61%) refere a escola como sendo a instituição que durante a infância e a adolescência mais se empenhou na sua atividade cultural. A família é referida por 40%. Os mais beneficiados têm entre 15 e 44 anos. As práticas artísticas amadoras colhem a adesão dos estudantes com mais elevado grau de ensino (32%), que se dedicam sobretudo à escrita (24%), à fotografia e cinema (20%), à pintura (18%) e à música (14%).
