Manuel de Lima Bastos tinha apenas oito anos quando um episódio à partida insignificante acabou por moldar a sua vida. Leitor constante dos livros de Aquilino Ribeiro, o pai procurou transmitir esse gosto ao filho, oferecendo-lhe um exemplar de "Cinco réis de gente".
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Nem nas suas efabulações mais otimistas o progenitor imaginaria que esse seria apenas o início de uma longa relação de afeto com a obra aquiliniana que hoje, 74 anos depois, ainda se mantém com o viço de sempre. "Desde então, leio, releio e tresleio Aquilino. Não há um dia em que não leia, pelo menos, umas três ou quatro páginas", afirma o advogado, que elege o romance "A casa grande de Romarigães" "o cume do português literário".
Desde que o romance foi publicado Lima Bastos cumpre com gosto um ritual todos os anos: reler o livro, detendo-se não tanto na trama ou nos incidentes factuais, mas na construção literária. A cada releitura - e já lá vão mais de 60 -, frisa que encontra sempre nova matéria de encanto. E nem sequer apenas nesta narrativa mais célebre.
"Há uns tempos estava a reler o "De Meca a Freixo de Espada a Cinta" e encontrei uma frase em que nunca tinha reparado e me impressionou bastante: "Nenhuma língua é capaz de descrever sentimentos tão complexos como o amor e a amizade, com a possível exceção do assobiar do melro"".
A "traição" de Torga
O fascínio pela obra de Aquilino Ribeiro deve-se em grande parte ao deslumbramento formal, mas não só. Nos seus livros, assegura, "ele consegue fazer como nenhum outro um retrato total do homem ibérico", numa faixa territorial que compreende as nossas Beiras mas também a Meseta espanhola.
Já afastada no tempo, essa caracterização psicológica continua a fazer todo o sentido, reitera o especialista, convencido de que o português é um ser de contrastes: "Tem um toque de vigarista, mas é também capaz de atos de grandeza".
De nome central da literatura portuguesa - apesar de o próprio dizer que sempre foi mais conhecido do que lido -, o autor de "Quando os lobos uivam" foi aos poucos caindo num obscurecimento que o advogado atribui a uma campanha destinada a desincentivar a leitura dos seus livros. "Acusaram-no de ser difícil de ler, mas o que ele sempre fez foi utilizar os múltiplos recursos da língua. Com graça, até dizia que o português era uma língua pobre, porque tinha palavras a mais".
Tudo poderia ter sido diferente, advoga, se tivesse conquistado o Prémio Nobel da Literatura, como chegou a ser defendido por autores como Alberto Moravia ou André Malraux. "Como Aquilino era opositor do regime, mesmo que nunca se tenha metido na política, Salazar fez pressão para que ele nunca o ganhasse".
Numa das vezes em que o seu nome chegou a ser cogitado, conta o investigador, uma candidatura dupla oriunda de Portugal - o que violava os estatutos do prémio - frustrou as suas intenções. "Infelizmente, o Miguel Torga deixou-se subornar por um escritor menor do regime, o Joaquim Paço d"Arcos, e avançou com uma candidatura, o que fez com que Aquilino não ganhasse", lamenta.
Da escrita aos roteiros
Se a paixão por Aquilino atravessou toda a sua exigente vida profissional, foi com a reforma, há 15 anos, que esse gosto adquiriu uma nova dimensão, ao escrever livros que abarcavam a obra e a figura aquilinianas em toda a sua extensão. Em apenas uma dúzia de anos escreveu outros tantos livros, que versam sobre a sua relação com as mulheres ou incidem na representação pictográfica da sua figura.
A par desta labuta na escrita, promove e dinamiza, com o apoio da cooperativa Unicepe, roteiros de Aquilino, onde não faltam passagens pelos lugares fundamentais da sua vida e obra.
Por todo esse esforço contínuo, foi sem surpresa que, há pouco mais de uma semana, a Associação Portuguesa de Escritores (APE) atribuiu-lhe o título de sócio honorário, uma honraria poucas vezes concedida no historial da agremiação literária. Embevecido com a distinção, diz que a trocava por outra que considera bem mais importante. "Dar-me-ei por satisfeito se, daqui a alguns anos, alguns dos poucos leitores do Aquilino disserem que o descobriram devido às minhas palavras".