Já está nos cinemas "Com a alma na mão, caminha", de Sepideh Farsi.
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Sepideh Farsi é uma realizadora iraniana, há muito exilada na Europa. Após o início do conflito na Palestina, viajou para o Cairo, para tentar depois entrar em Gaza. Face à impossibilidade de atravessar a fronteira, instalou-se na capital egípcia, de onde começou um relacionamento por videochamada com a jovem fotógrafa Fatma Hassona. A filmagem dessas conversas deu origem ao filme "Com a alma na mão, caminha". Mas no dia a seguir à seleção do filme para o último Festival de Cannes, em maio passado, a realizadora deixou de ter notícias de Fatma. Na realidade, o seu apartamento fora destruído, matando-a, juntamente com praticamente toda a sua família. Ainda em Cannes, estivemos a conversar com Sepideh Farsi. Veja aqui o trailer.
Pensa que a morte de Fatma foi premeditada?
Numa primeira fase disseram que tinha sido morta por um míssil. Os media disseram que tinha sido uma bomba israelita, ou um ataque israelita durante um raide. Há termos diferentes utilizados pelos jornais. Foi só num segundo momento que se falou de míssil. Uns primos da Fatma dizem que foram dois mísseis que alvejaram o andar do prédio onde ela vivia. Que seria mesmo o alvo a atacar.
Houve alguma versão oficial do lado dos israelitas?
O exército israelita disse que tinham como alvo um membro do Hamas. Quer dizer que foi um ataque direcionado. Não disseram que o alvo era ela, mas um membro do Hamas. Alguns jornais pediram que fosse divulgado o nome do membro do Hamas e se tinha sido mesmo atingido. Mas não responderam.
Quais são as conclusões mais recentes?
Houve um operador de imagem palestiniano que esteve lá a filmar para uma emissão alemã. As imagens mostram a deformação do betão, a forma como o andar foi arrasado. E os outros andares ficaram intactos. A conclusão é que um drone lançou dois mísseis de precisão, que são programados para explodir nm determinado momento. E explodiu no andar em que a família da Hassona vivia. Não há dúvida de que o alvo era aquela casa.
Teria sido reação à seleção do filme para Cannes?
Não sei se terá sido por isso, pelo facto da Fatma ser fotógrafa ou pelas duas razões. Só os israelitas podem responder.
Já se perguntou o que teria acontecido se o filme não tivesse sido selecionado ou se não o tivesse feito?
Claro que me coloco essa questão todos os dias. Mas também penso o contrário. Quero dizer, se ela tivesse sido morta e eu não tivesse feito o filme, não haveria estas imagens, a história dela não teria sido divulgada. Conforme as horas, coloco-me essas duas questões diferentes. Não paro de pensar nisso. Mas ver que o filme chama tanto a atenção é importante para ela, eu sei, é importante para mim e talvez faça as coisas avançarem um pouco pela causa palestiniana, para que a guerra pare.
Houve alguns elementos da família que sobreviveram...
Sobreviveu a mãe e há ainda dois irmãos que estão no Cairo, por razões médicas. Já falei com a mãe. É uma mulher com uma força inacreditável. Perguntei-lhe duas vezes se queria deixar Gaza. Uma através do intérprete, outra diretamente. Foi clara, não quer sair de Gaza. Quer ficar lá, e reconstruir a casa dela. É como uma grande parte dos palestinianos, que sabem, desde 1948, que se saírem do território vai ser quase impossível regressar. Se vão embora, é para sempre.
Pode recordar mais em detalhe as circunstâncias em que a encontrou?
No dia 7 de outubro de 2023 ainda estava em tournée com o meu filme sobre a guerra entre o Irão e o Iraque. Andava a apresentar um filme de resistência contra a guerra e nessa altura já havia a guerra na Ucrânia. Enquanto iraniana sempre estive no centro de vários conflitos, a ligação com a Rússia, a questão palestiniana. Apesar de viver no exterior, sentia-me implicada. Via na televisão as imagens da guerra, mas nunca via os palestinianos, eram apenas números, estatísticas. A palavra nunca lhes era dada.
Foi por essa razão que tentou ir para Gaza?
A palavra nunca era dada aos palestinianos. Peguei nos meus aparelhos e comprei um bilhete de avião para o Cairo. Estava muito otimista, pensava que podia atravessar a fronteira e chegar a Gaza. Mas era impossível, informei-me na embaixada francesa, com as autoridades palestinianas, com os egípcios. Toda a gente me disse para esquecer, não seria possível. Nascida no Irão, com um passaporte francês, era quase missão impossível.
O que aconteceu então?
Fiquei no Cairo, a viver com uma família palestiniana que tina deixado Gaza. Um dos jovens da família falou-me de uma amiga que era fotógrafa e ainda vivia em Gaza. Falou-me dela de uma forma que me deu vontade de a conhecer. Entrei em contacto com ela, pediu-me duas horas para encontrar uma boa ligação, o que é sempre complicado em Gaza. Duas horas depois fiz a primeira chamada, que é o início do filme.
O que lhe interessou na Fatma, para ter a ideia de fazer um filme sobre ela?
Senti uma grande energia, um sorriso enorme, uma luz, qualquer coisa de muito icónico, com o xaile cor-de-rosa. A forma como estava muito à escuta e ao mesmo tempo muito orgulhosa. Tudo o que ela diz nessa primeira chamada é alucinante. Ela diz frases que vamos recordar para sempre, como "eles não nos podem ganhar" ou "não temos nada a perder". Mas quando me disse que "tudo o que Deus faz é por uma razão" eu disse-lhe que não estava de acordo. Mas ela era mesmo assim, nada foi preparado.
O que simboliza agora o sorriso dela?
A esperança, o prazer de viver, a resistência. É um sorriso muito carregado. Mas é um sorriso com muitas cores, por vezes é muito alegre, outros está tintado com alguma tristeza. Há uma gama infinita de emoções que passam pelo seu sorriso.
Para si, o filme mudou de sentido, quando teve conhecimento da morte dela?
Naturalmente. Mas agora quase que vejo sinais que não tinha visto antes. E conheço o filme de cor, filmei-o, montei-o, remontei-o. Com exceção de um pequeno momento no final, não mudei nada. Mas decifro outra coisa, à luz do que lhe aconteceu, no poema que ela diz, em pequenas coisas. Como se ela se estivesse já a preparar. Mas não é nada lógico, são só interpretações.
O que também é forte no filme é as trocas entre as duas, essa espécie de espelho. Ela não podia sair de Gaza, a Sepideh não pode entrar no seu país.
No que diz respeito à liberdade de movimentos estamos nos antípodas. Ela estava presa na terra dela, eu posso viajar praticamente pelo mundo inteiro, com a exceção do Irão, onde poderia entrar mas depois de onde não poderia sair. E havia coisas em que éramos muito diferentes, ela era profundamente crente, eu não o sou de todo. Embora eu venha de uma família muçulmana. Sou ateia, é a minha escolha pessoal. Mas não nos escondemos, em relação a essa questão.
O que as aproximou mais, enquanto mulheres, seres humanos?
Uma abertura em relação ao mundo, uma grande curiosidade, a imagem, claro, ela fazia fotografia, eu faço fotografia e filmes. A sede de justiça, no sentido mais lato do termo. Há 45 anos que nos batemos pela liberdade no Irão contra um regime ditatorial. Penso que não estamos longe da vitória. Em 2022 pensámos que estávamos preparados. E gostaria de ver um dia uma Palestina livre.
Para a Fatma, as fotografias faziam parte desse seu empenhamento...
Ela não podia apenas viver o quotidiano. Tinha o sentido do combate, da liberdade. Com as suas fotografias, queria documentar a guerra para a História, para os filhos. Tinha esse sentido de missão, são palavras dela, no fim do filme. Fiquei impressionada que alguém tão jovem como ela já tivesse um tão grande sentido de responsabilidade histórica.
Há um conflito entre a urgência da cobertura jornalística do conflito e o tempo necessário para se fazer um filme?
Tive essa consciência, quando comecei a filmar, em março do ano passado. O processo cinematográfico é muito longo e precisava de vários meses para estabelecer uma relação profunda com ela. Mais os meses para montar o filme, para encontrar a sua forma. Era algo de antagonista com o tempo jornalístico. Sobretudo televisivo e radiofónico. O cinema é todo um outro ritmo de reflexão. E aceitei que tinha de ter esse tempo.
Para si, o cinema é uma forma de intervir politicamente?
Nem todos os realizadores podem fazer filmes políticos. Por vezes há filmes que não parecem nada políticos, mas no fundo são políticos. E também pode acontecer o contrário. O Godard é um exemplo de um realizador que fazia por vezes comentários mais ou menos diretos sobre política. Mas muitos realizadores não estão muito à vontade. Por vezes, a semente política de um filme está escondida, não está à vista.
O seu filme anterior, a animação sobre a guerra entre o Irão e o Iraque, era mais pessoal para si. Mas aqui tudo é mais real...
O motor de um filme é sempre pessoal. Mesmo desta vez, se fui à procura de saber como se vive em Gaza, talvez tenha sido como resposta ao passado do Irão, como os iranianos viveram quando foram bombardeados durante a guerra. De qualquer forma nunca se encontram todas as respostas às nossas questões existenciais num único filme.
Pensa que a resposta do mundo em relação ao que se passa em Gaza é a mesma que se tem dado ao conflito entre a Ucrânia e a Rússia?
Tenho a impressão que vivemos num mundo em que as vidas não têm o mesmo valor. Eu sou fortemente pela Ucrânia, mas a importância que o mundo dá a esse conflito por comparação com o que se passa em Gaza, é muito maior. Ou na Cisjordânia, onde os registos públicos foram confiscados ou queimados por Israel. Já não se sabe a quem pertence a terra. Ou em Jerusalém Ocidental, com crianças impedidas de ir à escola. São coisas que não vemos nos jornais. O mesmo na Ucrânia teria feito um ruído muito maior.
Qual é a sua explicação para esse facto?
Há tomadas de posição políticas que custam mais do que outras. Há quem queira pagar esse preço e quem não queira. Há atos de simpatia que são muito fáceis. Cortar umas mechas de cabelo em solidariedade com as mulheres iranianas é bom, é muito forte, mas não custa muito, não exige uma grande coragem. Tomar posição pelos palestinianos, hoje, exige muito mais. Há muita gente que gostaria de se empenhar pela causa palestiniana, mas que tem medo das represálias.