O realizador fala de "O som que desce na terra", nas salas. Um filme sobre uma mulher progressista, fora do seu tempo, num mundo de homens, numa terra de homens, numa guerra de homens.
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Maria da Luz tem o marido desaparecido na guerra colonial. Os dois filhos anseiam também pelo regresso do pai. Decide então gravar mensagens de familiares e partir para Angola, para as entregar aos soldados que morrem de saudades de casa, ao mesmo tempo que tudo faz para encontrar o marido. "O som que desce na terra", interpretado por Gabriela Barros, é o novo filme de Sérgio Graciano, que tem dividido a carreira entre a televisão e o cinema. Quando já está pronto para estrear, em abril próximo, "Salgueiro Maia - O implicado", dirigiu já alguns episódios da segunda temporada de "Auga Seca".
De onde veio o interesse pelo tema da guerra colonial?
De uma reportagem que eu e a minha mulher, a Filipa Poppe, lemos em 2007. A Filipa teve a ideia de transformar a história da Maria Estefânia Anacoreta num romance ou num filme. Fomos falar com ex-soldados da guerra colonial, ela convidou a Joana Andrade para escrever com ela e assim nasceu o filme.
Como é que trabalhou depois com as argumentistas?
Elas escreviam, eu ia lendo, dizia o que achava, umas vezes convenciam-me que eu estava errado, outras vezes era eu que as convencia. Foi uma relação normal de argumentistas com realizador. De respeito e de saber ouvir. Mas também houve umas cedências grandes, porque eram duas mulheres a escrever sobre uma mulher e eu entrei mais na altura da guerra. Para o lado feminino da história elas tiveram uma opinião mais forte.
O facto de ser uma personagem feminina esteve na origem de serem duas mulheres a escrever o filme ou foi apenas uma coincidência?
Foi completa coincidência. O filme aparece num momento em que se discute o papel da mulher. Nada mais a tempo, mas foi completa obra do acaso. Não tem rigorosamente nada a ver com isto.
Apesar de se basear numa história verídica, este episódio é realista ou também há um importante lado ficcional?
O que é real é a entrega das mensagens em Angola. A Maria Estefânia Anacoreta era uma senhora que vivia em Santarém, trabalhava na Emissora Nacional, tinha muita pena das famílias que estavam cá sem os parentes e foi a Angola entregar mensagens aos soldados. O resto é completamente ficcional.
Depois da guerra colonial, o Salgueiro Maia, que teve um papel decisivo no seu fim.
Eu não estive na guerra colonial, claro, mas tem acontecido na minha vida ter projetos ligados ao tema. Convidaram-me até para fazer uma série sobre a guerra colonial e achei que devia parar um bocado, até porque acaba por ser muito intenso. Eu tinha um tio que esteve lá, ficou muito desequilibrado, com um distúrbio grave. Tenho-me lembrado muito dele, o filme aviva as memórias, os fantasmas vão aparecendo ou desaparecendo. Voltamos a ter dor, é uma coisa um pouco estranha.
Mas o tema ainda continua a ser uma espécie de tabu.
Não há muitas abordagens, é verdade. E sobretudo uma mulher a contar esta história. Não tem muito a ver, mas há uns cinco anos apresentei um projeto sobre a PIDE à RTP e disseram-me que era demasiado cedo. Há ainda muitas pessoas a lidar mal com estes temas.
Quais foram as principais dificuldades de fazer um filme de época?
É sempre difícil quando os orçamentos não são gigantes. Tivemos de fazer Angola cá, na Azambuja e no Forte da Caparica. Acho que resultou bem, não se notam essas fragilidades.
A Gabriela Barros leva o filme às costas, do princípio ao fim.
Nunca tinha trabalhado com ela mas já lhe tinha dito que gostava que ela fizesse este filme. Ela já sabia que ia fazê-lo. Tinha-lhe pedido para emagrecer quando começássemos a rodar. A Maria da Luz é uma mulher atormentada, que não come. Lembro-me perfeitamente que na altura ela emagreceu imenso. Ensaiámos muito, ela é uma trabalhadora, queria que tudo saísse perfeito e acho que fez um trabalho notável.
Há uma certa poesia nos títulos dos seus filmes. De onde veio "o som que desce na terra"?
Nós guiamo-nos muito pelos sons. Achei que o filme era exatamente alguém que levava o nosso som a Angola, à terra, lá abaixo. Comecei a desenhar umas palavras e saiu-me "O som que desce na terra".
Como é que o Sérgio é uma das pessoas que mais filma em Portugal?
O segredo é uma grande vontade de filmar. Mas não sou sempre eu que escolho filmar, às vezes escolhem que eu filme. Estou a rodar uma série e vou acabar um filme em dezembro, depois vou fazer uma série para a Islândia. Tenho sempre esta vontade de fazer mais e mais. E quero aperfeiçoar-me, também. Quero fazer mais e melhor, não quero só fazer mais. E só se pode fazer melhor se formos fazendo mais.
Pode falar um pouco da experiência de "Auga Seca"?
Eu só fiz a segunda temporada. Portugal entrou com mais dinheiro, exigiu um realizador português e fui eu a fazer essa parte. Com estas plataformas de repente estamos a apontar para outros sítios e o "Auga Seca" é uma série muito premiada lá fora, já com alguma notoriedade. Apesar de eu entrar a meio os espanhóis receberam-me muito bem.
Gabriela Barros: "Li o guião de rajada, numa noite só"
A Maria da Luz de "O som que desce na terra" é interpretada por Gabriela Barros, que temos vindo a ver sobretudo em séries de televisão, mas que acaba de rodar também o último filme de João Botelho. A atriz é filha de mãe portuguesa e pai brasileiro e nasceu em Bruxelas. "Não tem nada de muito poético. A minha mãe foi trabalhar para a Comissão Europeia e eu já nasci lá", conta.
Vinda para Portugal aos 19 anos, tirou um curso de teatro e ingressou no Conservatório, começando a aparecer em várias produções. Mas foi em "Morangos com açúcar" que despontou. Gabriela Barros admite haver um estigma em relação a essa geração, "mas não me aborreço de todo. Fez parte do meu percurso, abriu-me as portas, ensinou-me praticamente tudo o que sei tecnicamente. Só fico com pena quando sou reduzida a isso e não haja tanta repercussão do que tenho feito nos últimos 15 anos".
A atriz recorda como chegou a este projeto: "Quase um ano antes das filmagens o Sérgio entrou em contacto comigo, dizendo que tinha pensado em mim para a Maria da Luz. Mandou-me o guião e li-o de rajada, numa noite. Fiquei muito emocionada. Estive um ano a imaginar como seria o filme".
A pesquisa sobre o período da guerra colonial não foi difícil para a atriz. "O meu padrasto era capitão-de-mar-e-guerra, esteve no ultramar na altura e contou-me muitas histórias", diz. "Perguntei à minha avó como era Lisboa e Portugal nesse tempo. Fui ouvindo muitas histórias de quem esteve lá e estava cá."
O filme foi escrito por Filipa Poppe e Joana Andrade, o que, na opinião da protagonista, valorizou bastante a construção da sua personagem. "O filme só poderia ter a sensibilidade que tem por ser escrito por duas mulheres. Tenho feito ultimamente muitos trabalhos escritos por mulheres e é muito diferente. Há um posicionamento muito sólido de quem conta uma história de uma mulher, com os seus dramas e as suas inseguranças. Mais ainda num lugar de mãe."
Gabriela Barros não teme dificuldade em se identificar com esta mulher. "Onde me encontro com ela é exatamente nesta coragem incerta que ela vai tendo durante o filme, esta coragem que ela não sabe que tem. Foi aí que mais me revi." E explica o seu método habitual de trabalhar: "Tento sempre encontrar um ponto comum, um ponto de entendimento onde me consiga rever. E quando me sinto mais distante tento ter um olhar de compreensão".
Gabriela Barros fala da verdadeira mulher por detrás da história, Maria Estefânia Anacoreta, para quem tem palavras de grande admiração. "É extraordinário o que aquela mulher fez naquela época, na posição em que estava. Era ainda mais altruísta do que o filme mostra, porque não tinha nenhum familiar lá."
Para a atriz, a parte psicológica foi a mais dura de suportar durante todo o trabalho do filme. "Fisicamente, eu e o Sérgio decidimos que tinha de emagrecer, para dar à personagem um lado mais duro, mais vincado, mesmo o rosto. O que custa são os dois primeiros quilos, depois uma pessoa apanha o comboio e lá vai. Mas tentar encontrar esses elos em comum, rever-me na pele desta mulher, fora da minha realidade, foi o mais duro e o mais fascinante do filme."
Durante a rodagem, sobretudo nas sequências no cenário de guerra, Gabriela Barros era uma das raras mulheres em cena. "Os momentos mais fortes foram quando filmámos Angola. Como é que uma mulher se comporta, como é que uma mulher se defende?", diz, referindo ainda a cena de agressão sexual de que é vítima que teve de filmar: "Estava muito bem escrita e a abordagem do Sérgio foi muito sensível".
Filme de época, "O som que desce na terra" obrigou Gabriela Barros a vestir-se, pentear-se e maquilhar-se como se fazia na década de 1960. "Adoro fazer projetos de época, em teatro ou em cinema. Devo ter nascido noutra época. Tive de aprender a trabalhar com aqueles gravadores de época, a mexer na fita. O pessoal do som ensinou-me. É um objeto já raro e todos os cuidados foram poucos para não o estragar. Era pesadíssimo, devia ter uns 20 quilos."
A atriz tem feito comédia, drama e musicais. "É isso que faz com que seja fácil, poder fazer um bocadinho de tudo. Não quero categorizar-me em nada, quero poder ter a escolha aberta, que se lembrem de mim, que me vejam de várias formas para que torne isto muito mais fácil do que parece. Adoro este desafio de agora fazer uma comédia, depois ir fazer um musical. É o que me mantém vive e fresca. E atenta."
Gabriela Barros afirma que, mesmo em pandemia, não parou. "Tenho tido sorte, mas sei que não foi esse o caso para todos. Sei que os apoios não estão de todo do nosso lado." Quanto ao momento que o cinema e o audiovisual atravessam entre nós, está muito otimista. "O mundo está cada vez mais a abrir portas e a pôr os olhos em Portugal, nos nossos técnicos, nas nossas produções, nos nossos atores, nas histórias que temos para contar. O Estado não está a apoiar como poderia, ou deveria, mas há muitos investidores de fora que cada vez mais estão-se a aperceber que este cantinho da Europa pode ter muito potencial."
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