Historiador e romancista, Sérgio Luís de Carvalho regressa com "A dança dos loucos" e "Das tripas coração". Duas abordagens distintas a um Portugal do século XVI em que a entrada maciça de riquezas nunca se traduziu em desenvolvimento.
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A paixão pela escrita e pela História são as duas principais forças motrizes da obra de Sérgio Luís de Carvalho. Nascido em Lisboa há 63 anos, é autor de 35 livros, distribuídos de forma quase equitativa entre o ensaio e o romance.
São esses também os géneros dos seus mais recentes livros, "A dança dos loucos" (Clube do Autor) e "Das tripas coração: saúde, higiene e medicina no tempo dos descobrimentos" (Minotauro).
Na primeira parte da longa entrevista concedida ao "Jornal de Notícias", o autor de "Os peregrinos sem fé" e "Lisboa nazi" fala sobre a incapacidade crónica do país em reter as suas riquezas, mas também sobre os sinais preocupantes de muitas das transformações em curso, seja a "alienação" ou o "abastardamento da língua portuguesa".
Dois novos livros - ainda por cima bastante fundamentados - publicados num curto espaço de tempo não é algo tão comum como isso. O seu ritmo de publicação - 35 livros, 15 dos quais romances - deve-se mais a uma questão de método e capacidade de trabalho ou vontade de contar histórias?
Tudo isso, creio... Antes de mais tenho, e sempre tive, uma enorme paixão pela escrita. E como sempre gostei de História e de Literatura, sempre tive uma enorme vontade de escrever romance histórico e livros de História.
Mas a vontade é apenas o primeiro passo, claro. Para conseguir satisfazer essa vontade e esse gosto, tenho de ter um método de trabalho que me permita produzir. Para tal, tenho uma metodologia de trabalho relativamente rígida e constante. Assim, investigo e escrevo todos os dias (normalmente, pelo menos três horas), tento estar sempre atento, nas horas vagas, a coisas que contribuam para o que estou a escrever (como a leitura de artigos e de livros, o visionamento de documentários e filmes, a frequência de espaços culturais e por aí fora). Até a mera conversa com outras pessoas (dependendo das pessoas, claro) me é útil. E na verdade, nada disto é "trabalho" para mim, tudo isto me apraz, me agrada...
No fundo, o ponto de partida é "querer". Querer realmente escrever e publicar, querer partilhar, querer contribuir culturalmente, logo civicamente. Isso, realiza-me.
Começou a publicar romances históricos ainda antes de estes se terem tornado um dos nichos mais pujantes do setor da edição. Sente que os portugueses estão mais interessados do que nunca pela História do seu país?
Os portugueses sempre estiveram interessados na História do seu país. Creio até que todos os povos estão interessados na sua História.
O problema é que muitas vezes o que lhes é dado não tem necessariamente a ver com o que os portugueses desejam, mas sim com o que os fornecedores de conteúdos pensam que eles desejam. A obsessão com o mercado tem destas coisas... Se se parte do princípio que os portugueses gostam é de espetáculo, dá-se-lhes espetáculo. E como as pessoas têm de ver espetáculo porque é o que se lhes dá, então a conclusão é que os portugueses gostam mesmo muito de espetáculo. Aliás, nos tempos que correm, até os noticiários tendem para o espetáculo, seja nos conteúdos, seja na forma como esses conteúdos são apresentados.
Depois, há a célebre questão da "moda". Alguém, algures, crê que o romance histórico está na moda, até daqui a uns tempos alguém, algures, decidir que já não está. É como os estilistas que decidem agora que as cores da moda para o inverno de 2024 serão os tons pastel, ou os diretores de programas que determinam que os programas de gastronomia estão na moda.... Há muito de construído na moda, seja a que nível for. Por mim, continuo a escrever romances históricos, independentemente da moda. Se o que escrevo tiver algum valor, permanecerá.
O romance "A dança dos loucos" procura explorar a eventual relação entre dois acontecimento distintos separados no tempo. A História tem mais vasos comunicantes do que poderíamos pensar?
Há vasos comunicantes em todo o lado. Sobretudo agora, em que tudo está ainda mais ligado com tudo graças às tecnologias de comunicação. Mas nos séculos anteriores também isso sucedia. Afinal, é como na vida...
Repare, o simples facto de a peste ser endémica no Planalto Central da Ásia, teve a sua influência nos Descobrimentos portugueses. Sabemos que a famosa Peste Negra (1347/1352) chegou à Europa vinda do oriente, trazida no bojo dos navios comerciais italianos. Aportou em Messina e alastrou por toda a Europa, dizimando um terço da população e desestabilizando a economia e a sociedade. Os Descobrimentos (neste caso, os portugueses) foram também uma forma de uma nação vencer as dificuldades com que se deparava no início do século XV, dificuldades herdadas desse difícil e crítico século XIV, o século em que a Peste Negra (oriunda da Ásia) potenciou imensamente a crise recorrente dessa centúria.
É verdade que a História está mais dependente das grandes linhas de força e dos fenómenos de longa duração, que destas coisas mais circunstanciais. Os Descobrimentos portugueses far-se-iam na mesma. Mas quiçá de outra forma. Repito, é como na vida... Tudo está relacionado. Nem que seja indireta e remotamente.
Na "A dança dos loucos" temos dois factos relacionados literariamente: a "peste" de dança de Estrasburgo (1518) e o massacre dos cristãos-novos, em Lisboa (1506). Como é que estes dois fortíssimos eventos se relacionaram? Bom, aí, depois do historiador, terá de vir o escritor.
O massacre da igreja de São Domingos, em 1506, terá começado por uma pequena altercação. Como um incidente resulta num banho de sangue escapa a qualquer tentativa de compreensão?
Não é difícil compreender a génese do massacre de 1506. O contexto em que o reino vivia era uma panela de pressão prestes a rebentar. Havia uma peste prolongada, uma longa seca e uma crise económica daí derivada. Por outro lado, tínhamos a situação dos cristãos-novos, os antigos judeus batizados à força há menos de uma dezena de anos, e em cuja conversão ninguém acreditava, claro. Depois, o facto de a autoridade real e o governo estarem fora de Lisboa, foi outro fator a ter em conta no desencadear no alastrar do massacre.
A faísca acendeu-se em São Domingos, mas isso podia ter ocorrido noutro local, uns dias antes ou depois. Lá estão os vasos comunicantes; o que noutro contexto poderia ter sido apenas uma bulha ou uma zanga, redundou, na Páscoa de 1506, no massacre de quatro mil pessoas.
Uma vez mais, isto é como na vida. Se estamos numa fase difícil, uma palavra mais agreste ou uma atitude menos gentil para connosco pode desencadear uma briga de consequências imprevisíveis, quando, noutro contexto da nossa vida, tudo se resolveria boamente...
Muito (ou até tudo) pode ser explicado pelo contexto, sobretudo pelo contexto histórico. Afinal, a História serve, precisamente, como mecanismo de compreensão do presente. O problema é que o imediatismo, a superficialidade e o facilitismo explicativo típico de uma sociedade do espetáculo dominam a contemporaneidade em muitos campos. Como tudo tem de ser fácil e rápido, explicamos tudo com ligeireza, não vá o espectador mudar de canal.
Um dado curioso que aponta no livro "Das tripas coração" é que, independentemente da riqueza ou classe social, todos morriam de forma prematura nesses períodos. Ser rico e poderoso nesses tempos não era tão decisivo como é hoje?
Ao nível médico/sanitário, não fazia assim tanta diferença, realmente. Claro que os mais abastados comiam melhor, teriam lares menos desconfortáveis ou menos insalubres, agasalhavam-se melhor e por aí fora. Mas as enormes debilidades da medicina, a falta de infraestruturas básicas ao nível da higiene e as pestes mais ou menos recorrentes, debilitavam os organismos quase por igual. O parto de uma camponesa tinha os mesmos riscos do de uma princesa; o pai de D. Sebastião morreu de diabetes (segundo se crê) aos 16 anos, tal como qualquer sapateiro; uma sangria era tão ineficaz num rei como num tendeiro. Materialmente, era uma época árdua. O dinheiro não podia comprar saúde ou uma higiene perfeita, se não havia água canalizada ou esgotos.
A esperança média de vida não diferia muito entre abastados e pobres, os fatores que contribuíam para uma alta taxa de mortalidade infantojuvenil também não.
A evolução da Saúde, Higiene e Medicina não foi similar. Qual destas, na sua opinião, contribuiu de forma mais decisiva para a melhoria da qualidade de vida?
Foi, por certo, uma evolução lenta, mas a evolução desses três fatores esteve associada. O desenvolvimento da medicina levou, consequentemente, à evolução da higiene e à melhoria da saúde. Também a alimentação teve desenvolvimentos positivos a partir do século XVIII, com a introdução na dieta comum de novos alimentos oriundos do Novo Mundo, de que a batata é um bom exemplo. Por outro lado, a partir do século XVIII, com o arranque da Revolução Industrial e com o incremento das redes viárias e dos transportes, as distâncias e os problemas de abastecimento foram ultrapassadas, permitindo debelar carências em algumas regiões.
As quantidades astronómicas de dinheiro e riquezas várias que entraram em Portugal nos séculos XV e XVI não se traduziram no desenvolvimento harmonioso do país. Quais os erros mais graves cometidos?
De facto, em Portugal historicamente sempre entrou muita riqueza. Inicialmente de África, depois da Índia, depois do Brasil. Já no século XX, África tornou-se também uma potencial fonte de grande riqueza, sobretudo Angola. Mas, como disse na pergunta, essa entrada de riquezas nunca se traduziu num desenvolvimento do país. E isso deve-se a variados motivos. Numa análise muito simplista (já que não há espaço para mais) podemos dizer que as classes produtivas em Portugal nunca tiveram grande margem para se desenvolverem muito. Durante séculos, imperou, entre nós, aquilo que Vitorino Magalhães Godinho designou como o "terciário do Antigo Regime", ou seja, o clero e a nobreza, sempre associados ao aparelho de Estado e sempre dominantes. A própria Inquisição, para além de ser um tribunal repressivo em termos ideológicos, religiosos e culturais, foi também um mecanismo de travão à ascensão da burguesia portuguesa e um fator de domínio desse "terciário do Antigo Regime".
Para além disso, o desenvolvimento da instrução nunca foi uma grande prioridade entre nós, ao contrário do sucedido nos países do norte europeu, para os quais era essencial desenvolver essa instrução, quanto mais não fosse para permitir ao cristão ler a Bíblia.
Assim, a um Estado dominado pela nobreza e pelo clero e escorada ideologicamente na Inquisição, associou-se uma massa populacional iletrada e impreparada em termos técnicos. Quando Pombal quis relançar as "maquinofaturas", teve de contratar mestres estrangeiros. Estado rico mas perdulário, povo pobre e inculto, elites fracas e aperreadas pela repressão inquisitorial, eis, grosso modo, o panorama.
Depois, por estar dominado por aquele terciário, a riqueza entrada não era produtiva, mas desperdiçada (o ouro do Brasil com D. João V é um exemplo), comprando-se lá fora o que cá, amiúde se produzia, o que levou ao fracasso de muita da nossa incipiente indústria que não podia concorrer com os têxteis de França ou da Inglaterra, por exemplo. Não é por acaso que um nossos maiores estadistas deste período, o diplomata Alexandre de Gusmão, afirmava: "O reino geme no regaço da mais completa miséria. Não há dinheiro, não há braços, não há nada. A fradaria absorve-nos, suga-nos, leva-nos à ruína."
Isto foi dito em pleno ciclo do ouro brasileiro, quando entravam todos os anos toneladas de ouro e de pedras preciosas pelo reino dentro. Mas riqueza entrou e saiu - ou gastou-se, na sua maior parte - em importações, doações ou obras de escassa utilidade prática. Nessa altura, até o famoso aqueduto das Águas Livres teve de ser pago com impostos sobre os lisboetas, pois o ouro não dava para tudo...
Depois, fruto dessa ligação entre nobreza/clero e Estado fizeram-se escolhas políticas que não ajudaram, de que o Tratado de Methuen (1703) foi um exemplo. O ouro do Brasil acabou, em grande parte, por potenciar a Revolução Industrial inglesa.
Admito que estou a ser muito simplista, é verdade. Mas creio que não estarei a falsear o que se passou. Enfim, Portugal nunca foi uma nação rica; foi uma nação onde entrou riqueza, o que é diferente.
A esperança de vida baixíssima que marcou a Humanidade até há menos de dois séculos fazia com que a relação habitual com a morte fosse muito diferente?
Uma excelente pergunta. Mas é difícil responder. Como lidavam os pais com a perda de cerca de metade da sua prole antes de esta alcançar a adolescência? Como lidava um jovem esposo com o passamento da sua amada no parto? A recorrência da morte podia relativizar a dor?
Não sabemos ao certo. A História dos sentimentos é difícil de fazer, talvez a mais difícil. Temos crónicas de personalidades importantes (para o povo há menos crónicas) que manifestaram uma dor compreensível e esmagadora por uma perda íntima, tal como hoje. Mas essas crónicas são, muitas vezes, panegíricas, devemos ser prudentes e críticos com as fontes (como sempre).
Além disso, o que significa "sentir como hoje"? Mesmo hoje não há visões diversas da morte e da perda? Não será um anacronismo julgar a dor de outrora tendo como ponto de referência os nossos sentimentos?
Uma coisa parece certa. Aquela gente sofria e carpia. Camões escreveu: "Alma minha, gentil que te partiste..." E quem não se reconhece neste soneto? Mas, era o sentimento aí demonstrado similar ao nosso?
Claro que esta gente tinha o amparo da religião, já que tinham uma relação mais íntima com a fé. Mas, até que ponto a fé e a omnipresença da morte amorteciam os sentimentos?
Muito presentes desde a origem dos tempos, as superstições e crenças não desapareceram com a evolução tecnológica recente e o aumento da escolaridade. Como interpreta esta resistência?
O irracionalismo nunca desaparece. É algo inerente ao ser humano. Mesmo em tempos de avançada tecnologia, há sempre algo dentro de nós que nos sussurra que o nosso clube ganha o jogo se vestirmos as mesmas peúgas, ou que teremos sucesso num exame se dormirmos com o manual da disciplina debaixo da almofada... Contra isso, nada a fazer.
Por um lado, isto talvez até seja algo que nos torna mais humanos, e não meras máquinas de incorporação de dados e desencadeadores de ações apenas baseadas em 'inputs' de onde estão ausentes sensações, intuições, premonições ou "fezadas". Se todos pensassem que, quando jogamos no Euromilhões temos uma hipótese em "não sei quantos milhões" de ganhar, então, racionalmente, ninguém jogaria. Mas jogamos... É essa irracionalidade que, por vezes, nos humaniza mais...
Por outro lado, a irracionalidade é muito perigosa quando se sobrepõe à evidência científica (ou à pura e simples evidência) e nos fanatiza e nos leva a fazer mal a outrem.
No fim, os riscos do excesso de racionalidade são muito menores que os perigos da falta dela.
O país da primeira globalização está ou não condenado a uma posição residual ou meramente decorativa no mundo de hoje?
A nossa posição hoje, num mundo globalizado, é difícil. Creio que uma pequena nação como a nossa, pode perder muito do que é, se não souber manter a sua unicidade e especificidade. Acho aflitivo, por exemplo, como abastardamos o nosso idioma com anglicismos vãos, quando temos sinónimos em português. Porque dizemos que a câmara filma belos 'sunsets' em vez de crepúsculos? Porque é que empresa há de ter um 'budget' em vez de um orçamento? E as 'skills' em vez de capacidades ou competências? E porque é que aquela agência de apostas desafia as 'odds' em vez de desafiar as probabilidades? E para onde foram os antigos diretores executivos que agora são todos 'ceo"s'? E o 'mindset', as 'good vibes', o 'flyer', a 'frame' ou o 'device'?
Tudo isto - apesar de parecer anedótico e até inofensivo - parecem-me sinais de uma desestruturação do que temos de mais basilar: a nossa linguagem. Afinal, nós não pensamos, somos pensados pela linguagem...
Como dizia o autor brasileiro Ruy Barbosa, o primeiro sinal da decadência de um povo é o abastardamento do seu idioma...
Talvez isto seja algo de passageiro, não sei. Talvez eu esteja a ser pessimista e, no fim, saibamos mostrar a resiliência e adaptabilidade de sempre. Espero que sim, espero que saibamos preservar a nossa identidade num mundo cada vez mais globalizado e nivelado por baixo...
Os anos mais recentes - com a pandemia, crise económica e conflito na Ucrânia - demonstram de algum modo que a trilogia peste-fome-guerra, que muitos associam apenas a épocas medievais, ainda não foi definitivamente afastada do nosso horizonte?
Afastada? O século XX teve mais guerras que todos os séculos anteriores juntos; hoje, morre-se de fome nos países pobres, enquanto nos países ricos se desperdiça à tripa-forra; a tola moda anti-vacinas está a provocar o ressurgimento de doenças que estavam erradicadas. Afastada a trilogia peste-fome-guerra?
Na Idade Média, existiam pestes porque as condições médico-sanitárias eram más e a medicina era vã, e havia fome porque o ano tinha sido de seca e não havia que comer. Ponto final. E hoje?
Se tivesse que comparar os tempos em que vivemos com uma época histórica, qual seria?
Não há comparação com épocas anteriores, pelo menos em termos materiais e do que daí decorre. Os tempos, hoje, são radicalmente novos. Hoje temos uma tecnologia com que não sonhávamos há 20 anos e uma aceleração exponencial do conhecimento técnico. Isto abre portas desconhecidas e nunca antes supostas. Quem, há uns anos, adivinharia a preponderância dos telemóveis na nossa vida quotidiana, de tal modo que se o perdermos, nos sentimos desarmados e nus? Isto tem reflexos ao nível dos relacionamentos pessoais e do conhecimento, claro. Ao mesmo tempo, a nossa alienação começa a ser notória.
Impossível uma comparação, estes são tempos totalmente novos. Há hoje grandes potencialidades, claro, mas creio que a referida alienação em que tantos vivem começa a ser preocupante.