A primeira memória que guardo de Eunice Muñoz é demasiado pessoal. Era ainda menino.
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Sou daquela geração da radiofonia, vivia agarrado à rádio, era um grande fã de teatro radiofónico - foi, aliás, ali, que percebi o que é´o Teatro. Uma das minhas obsessões - até porque fantasiava imenso a partir do interior da imagem, que é a voz - era ver uma imagem de Eunice, cuja voz, tão característica e especial, fascinava-me. Um dia, a minha avó, que assinava a "Gazeta do Sul", chegou a casa e, como habitualmente, eu não queria comer a sopa.
A avó disse-me: "O jornal traz hoje uma foto de Eunice. Podes vê-la, se comeres a sopa." E, pela primeira vez, comi a sopa toda sem esforço. "E agora, o que queres?", tornou a avó. "Agora, só quero a Eunice", respondi. Fui para a sala, abri o jornal e lá estava ela, numa fotografia muito pequenina, tipo passe. Foi a primeira vez que vi Eunice. Muitos anos depois, contei-lhe esta história, no comboio, a caminho do Porto, cidade que ela adorava - fazíamos a viagem, ali encontrados por acaso, eu, ela e o José Mário Branco. Ela ouviu e ficou radiosa. Mais tarde, voltou a pedir-me para contar-lhe este episódio em que à voz dela passou a corresponder uma imagem.
Quando a voz de Eunice se perdeu, aquele timbre lindíssimo, aquela nasalidade horizontal, ela teve o gesto mais genial de todos os seus atos: pegar num texto de Franz Xaver Kroetz e percorrer o país inteiro subindo aos palcos sem falar. Aquele silêncio, que ficará para sempre povoado pela sua voz, é uma enorme inspiração. Ela até era bastante distraída e pouco estruturada nos trabalhos que escolhia, mas tinha um instinto fantástico. Um instinto de sobrevivência.
E se ela era uma atriz do texto! Quando a dirigi, em "Madame", um texto original de Maria Velho da Costa, o primeiro aspeto que nela se evidenciava era precisamente esse: a forma como formulava e construía o texto na voz. O sentido de estilo não seria a sua principal qualidade, mas chamava a si as palavras com uma consciência extraordinária da sua eficácia. Era completamente magnética! O segundo aspeto é ela própria. Teve uma vida fantástica, plena de aventuras pessoais, os maridos, os filhos, os netos, os bisnetos, era uma matriarca espantosa.
E, na verdade, a sensação que se tem quando Eunice entra em cena é a de um personagem que nunca deixa de estar presente, mas é, antes disso, ela própria, Eunice. É ela que queremos ver e ouvir. Isso tornou-se muito claro na digressão de "Madame" pelo Brasil. Tenho a visão de Eunice a entrar em palco com Eva Wilma (1933-2021) e aquela sala de São Paulo, esgotadíssima, ficar completamente magnetizada ao seu primeiro passo. Ver aquela soberana, inexpugnável e atrativa, é perceber que há nela qualquer coisa que transcende a sua inteligência, a sua beleza, o seu tamanho. Era altíssima em cena! Tinha a capacidade de adaptação que só as grandes atrizes têm. Esteve menos no palco do que aquilo que teríamos desejado. Mas a morte dela é apenas pensamento, um pensamento que sobe aos céus, não é o fim de nada. Eunice foi exaurindo o nosso imaginário até ao silêncio.
(Depoimento recolhido por Helena Teixeira da Silva)