Eunice Muñoz morreu no Hospital de Santa Cruz, em Lisboa. Tinha 93 anos e 80 de carreira. Governo decretou um dia de luto nacional. Cerimónias fúnebres decorrem na segunda e na terça-feira em Lisboa.
Corpo do artigo
Uma a uma, as luzes dos teatros foram-se acendendo no último ano para ver Eunice passar, ela mais alta em cena do que alguma vez fora, no seu triunfal ato final, dizendo sem falar um texto que todos podiam perceber sobre "A margem do tempo" (2021), esse movimento que não volta quando a vida lembra a sua irreparável finitude, Eunice de 92 anos, mais nova que nunca em digressão por salas esgotadas do país, ela que aos 23 anos se achava já demasiado velha para continuar a ser atriz e que por isso trocara os palcos pelo balcão de uma loja em busca de vida normal, Eunice, a menina nascida e criada no buliço modesto do circo de família, que aos 13 anos pisou pela primeira vez, exultante e contra todos os manuais de instruções, o palco do desejado Teatro Nacional D. Maria II, num "Vendaval" (1941) de veludo sem volta. "Foi o meu anjo da guarda que decidiu assim. Chorei muito, ri, vivi, foi uma fase muito importante na minha vida", haveria de reconhecer Eunice, atriz oficialmente apaixonada pelo seu ofício aos 28 anos.
Uma a uma, as luzes de todas as cidades hão de acender-se na próxima terça-feira para ver passar Eunice, a mulher, a mãe, a avó, a bisavó, a atriz com 80 anos de carreira que na última etapa da vida usou o silêncio como ferramenta para combater a perda da sua voz inconfundível, e que ontem acordou Portugal com a notícia de que partira. "Serena", como sempre desejara.
Eterna inteligência cénica
O coração de Eunice Muñoz deixou de bater na madrugada de sexta-feira, estava internada no hospital de Santa Cruz, em Lisboa, havia vários dias. Tinha 93 anos e uma longa lista de momentos em que driblou a morte - caiu, partiu os dois pulsos, lesionou a cervical, teve um tumor na tiroide, fez quimioterapia, foi-lhe diagnosticado um problema cardíaco, substituiu uma válvula, voltou a ficar doente -, reerguendo-se sempre como "Mãe Coragem" (1986), como na peça de Brecht encenada por João Lourenço, em que ela, naquele momento maior do teatro português, na pele da vendedora ambulante, depois de ter perdido os três filhos para a guerra, ainda resiste: "Espero poder puxar sozinha esta carroça, vai quase sem nada dentro. Agora, só posso começar tudo outra vez".
Eunice Muñoz, alentejana da Amareleja, nascida a 30 de julho de 1928, foi sempre a mulher que começou tudo outra vez. "Fui prejudicada pela censura. Mas fiz grandes papéis, uns melhores do que outros. Não me saí mal", disse em 2016 à TVI.
O presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, prestou-lhe ontem uma "emocionada homenagem", lembrou os bilhetes e os telefonemas que ela, noctívaga como ele, fazia a meio da noite empolgada com ideias frescas, agradeceu-lhe "décadas inesquecíveis", em nome de todos os portugueses e declarou um dia de luto nacional. Será no dia do funeral. O novo ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, convocou os portugueses para essa despedida: "Devemos-lhe o mesmo aplauso que sempre lhe oferecemos, um aplauso de certa forma eterno".
Do lado de lá do Atlântico, onde Eunice é igualmente venerada, Fernanda Montenegro, amiga e parceira de teatro e de idade, este ano empossada da cadeira 17 da Academia Brasileira de Letras, enalteceu a atriz da palavra num vídeo partilhado nas redes sociais. "O seu dom de carnificar uma dramaturgia escrita faz de seu corpo, de sua sensibilidade, de sua alma, um instrumento místico, transcendente, que visa, sem trégua, alcançar o que de melhor, como plateia, podemos atingir".
Montenegro, que quase partilhou o palco com Eunice em "Madame" (2000), numa encenação histórica de Ricardo Pais que circulou cá e lá, em Portugal e no Brasil (acabaria por ser Eva Wilma a dividir a cena), termina sem tocar na palavra "fim". "Viva seu coração batendo, viva sua criatividade indestrutível, viva seu fôlego, viva sua eterna inteligência cénica, bendita para sempre."
A noção de imortalidade da atriz brasileira contraria a perceção da criada "Zerlina" (1988) do monólogo encenado por João Perry, que diz ter percebido aos 30 anos ser mortal. Mas é muito provável que Eunice, a grande dama do teatro que detestava ser tratada por grande dama do teatro, estivesse enganada. E talvez pudesse tê-lo percebido naquela noite de 1955, em que uma multidão encheu a Avenida da Liberdade, disposta a pagar tudo por um bilhete, só para poder vê-la fazer de "Joana d"Arc". A crítica vaticinou logo ali, Eunice não tinha sequer 30 anos e estava de volta aos palcos pelas mãos de Vasco Morgado, que ela é genial. E a própria haveria de admitir, muito mais tarde, que aquela noite marcou uma viragem na sua carreira. Somaram-se os prémios, as distinções, as medalhas, as homenagens e as glórias todas. Mas como ela explicaria ao jornal "Público" em 2011, nunca se deixou deslumbrar, nem mesmo quando era a artista mais bem paga em Portugal. "Sou, por princípio, uma pessoa muito desprendida, não fico assim apanhada por coisas que façam muito barulho e tenham muitos brilhantes".
O último desejo da atriz
No teatro, Eunice teve dois mestres, Amélia Rey Colaço, que em certo sentido a descobriu, e Carlos Avilez, diretor do Teatro Experimental de Cascais, com quem trabalhou inúmeras vezes, e que ontem dizia confundi-la com o próprio teatro. Na revista, foi sucessivas vezes seduzida por Filipe La Féria. "Hoje o pano de boca do Teatro desceu e as luzes apagaram-se", escreveu o encenador que a dirigiu em "Passa por mim no Rossio" (1991). "Ela leva consigo muito dos mais belos e emocionantes momentos das nossas vidas. Os seus olhos de deusa, a sua voz, o seu tão doce coração, o seu talento de fogo, a inteligência e sensibilidade de grande atriz".
Mas Eunice, que amava poesia, deixou, também, a sua impressão digital na televisão - estreou-se em 1993, encarnando a figura de D. Branca, em "A Banqueira do Povo", novela das sete da tarde transmitida pela RTP - e no cinema. A sua última aparição num filme deveu-se a Vicente Alves do Ó, que insistiu em tê-la na obra sobre o pintor vanguardista Amadeo de Souza-Cardoso. Eunice é a avó de Amadeo.
Eunice foi "desobediente", rebelde, livre. Casou três vezes, por amor mudou de religião e de nome, teve seis filhos, oito netos e quatro bisnetos, recebeu críticas, não se arrependeu, nunca olhou para trás.
Há muitos anos, escreveu uma carta ao filho mais velho, com um desejo final, antecipadamente avesso ao Panteão. Pediu para ser cremada. "Pedi que as minhas cinzas fossem espalhadas no poço no Alentejo onde brincava com o meu irmão quando era pequena". Eunice foi a criada Zerline, foi Mãe Coragem, foi a Dama das Camélias, foi A Morgadinha dos Canaviais, foi Fedra, foi a Maluquinha de Arroios. Foi a mulher simples que sempre quis ser. E a atriz imortal que talvez não esperasse ser. E foi feliz até ao fim. "Chamem-me Eunice".