Agora publicadas pela Âncora Editora, as crónicas de Fernando Alves partem do efémero para abraçar o que permanece.
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Breve tratado diário de humanidade capaz de ressoar por muito tempo em quem a escutava, a rubrica radiofónica “Sinais” insistiu em mostrar-nos, durante mais de 30 anos, o esplendor que se esconde sob o manto diáfano da realidade.
Pela voz de Fernando Alves, fomos cúmplices, testemunhas e parceiros silenciosos de episódios que, partindo quase sempre da realidade prosaica, nos demonstraram que um olhar mais amplo e distendido – poético, pois então – sobre o quotidiano não só é possível como é desejável. Para que a “espuma dos dias” não nos engula de um só trago.
A reunião das derradeiras 50 crónicas carregaria, à partida, esse peso nostálgico da despedida, mas qualquer sentimento de vazio perde expressão com a possibilidade de regressarmos uma e outra vez a histórias que se entretecem umas às outras, como um interminável romance imaginário no qual nós, ouvintes e agora leitores, vamos compondo as personagens diretamente extraídas do dia a dia que se sucedem nestas páginas.
Como Amimo, agricultor da província moçambicana de Niassa que procura fintar a fome, ao trocar a produção de milho pela de cebola. Ou o entalhador Fialho, de Paredes, cuja história de apego à arte do restauro é contada pelo JN, por entre lamentos vários. Mas também Diogo, um jovem recluso envolvido num programa de criação de grilos para fins de alimentação humana.
Em todos, independentemente da origem, testemunhamos uma clarividência desarmante que ganha forma na certeza de que partilhamos um chão comum e que, como tal, as nossas ações estão sub-repticiamente ligadas.
Quase todas as crónicas são emolduradas por citações ou passagens de autores de diferentes graus de celebridade, numa manifestação mais de que a literatura é tantas vezes um aliado poderoso para a interpretação da atualidade, mesmo a mais comezinha.
O lugar do espanto, do maravilhamento contínuo, é um dos esteios destas crónicas, nas quais Fernando Alves faz seu o apelo do escritor uruguaio Eduardo Galeano para que “comecemos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar”. Mesmo que para tal fiquemos por uma “ambição chã”, “a ver passar os transeuntes, com o seu ar triste, como só os vagabundos sabem detetá-lo. Até sempre”.
"Sinais - as últimas 50 crónicas na TSF"
Fernando Alves
Âncora Editora